domingo, 9 de novembro de 2008

Pedras da calçada

Não gosto de shoppings. A sua própria génese é um autêntico desafio às Leis da Natureza. Há a época das cerejas, dos míscaros e da marmelada. No que toca aos shoppings, é vê-los nascer todo o santo dia. A este ritmo, um dia destes, só mesmo paredes meias com um mais crescido, é que será possível parir mais um destes meninos.
Tudo nos shoppings me enerva. A confusão, as luzes, o cheiro a batata frita. Mas se há coisa que me aborrece muito mais, é o que sobra para além das paredes de um shopping: a triste agonia de um deserto. As ruas das cidades vazias de gente e os edifícios nobres a sobreviver da renda de uma loja dos chineses. Não será de admirar por isso, que daqui por uns anos, encontremos no Monopólio a Avenida dos Descobrimentos do Centro Comercial Colombo a substituir por exemplo, a Rua de Santa Catarina do Porto.
Para mim, a grande diferença de uns shoppings para os outros não está na presença da loja X ou Y, mas sim no tipo de chão. Acho verdadeiramente genial os shoppings que saúdam as solas dos nossos sapatos com calçada portuguesa. Eu não sei se o Tino de Rãs tem algum interesse económico nisto, mas seja como for acho isto delicioso, sobretudo porque não faz sentido nenhum.
As pedras da calçada que conservam em si tantas histórias da cidade, aprisionadas agora num jardim zoológico de escadas rolantes. Em boa hora decidiu António Gedeão escrever a “Calçada de Carriche”. Porque retrata o pulsar da vida na liberdade das pedras da calçada. Portuguesa ela ou simples pedras marteladas em cima de areia. “Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada...”. Palavras amplificadas pela voz da Odete Santos que um dia ouvi no conforto da minha alcatifa. O sal no saleiro, o açúcar no açucareiro, as pedras da calçada nas ruas da cidade e as gentes a caminhar sobre elas. É pedir muito? Talvez quando começarem os saldos...

Um filme inesquecível

Hoje deu-me para ouvir “The Ultimate Collection - Barbra Streisand”. Depois de correr uns programas na minha base de dados mental, cheguei à conclusão, que a única recordação em concreto que tenho desta senhora, é a sua performance no majestoso “Príncipe das Marés” junto de Nick Nolte. Há medida que o CD percorre o seu caminho, vai aumentando aquela sensação de “eu conheço isto de qualquer lado”. Com excepção da música “Memory”, creio que todos os meus palpites têm como som de retorno a palavra “Água”, à imagem da tradicional Batalha Naval.
O ano passado fui às Feiras Novas a Ponte de Lima. Entre concertinas, farturas e sarrabulho, cruzei-me com inúmeras pessoas conhecidas, entre ódios juvenis até aos amigos de sempre. Cruzei-me com um casal que me cumprimentou com um “Olá” ao qual eu retribuí com um “Então, tudo bem?”. E ficou por aí. Fiquei a pensar demoradamente de onde raio é que eu os conhecia, mas sem sucesso. Este ano fui novamente às Feiras Novas e a cena repetiu-se mas com uma diferença abissal. Fui eu que lhes disse “Olá” ao qual eles retribuíram com o “Então, tudo bem?”.
É inacreditável o quanto nos esquecemos das coisas. O nosso cérebro faz a limpeza das nossas recordações a seu belo prazer. Compreendo que o mesmo argumente “A última vez que mexeste nestas memórias ainda o João Gil não tinha a madeixa branca”, mas seja como for, irrita-me um bocado.
Estas pontas soltas que o nosso cérebro deixa por aí, nada mais são do que títulos de cassetes cujas fitas magnéticas há muito se desintegraram. Memórias marginais que não têm relevância para a nossa história. È o nosso cérebro a ditar as suas leis.
Creio no entanto que temos algum espaço de manobra. Só temos de trazer constantemente para o mundo dos vivos algumas dessas memórias. Tenham elas importância ou não. O filme “Os 3 fugitivos” nada acrescenta à minha vida. Mas a quantidade de vezes que eu falo deste filme, fará certamente com que demore muito muito tempo, até que me esqueça do mesmo. Já me estou a ver daqui a 50 anos enfiado num lar a falar com uma enfermeira boazona enquanto ela me está a dar banho:
- Ó menina Carmo acha que pode por hoje de tarde o filme “Os 3 fugitivos”?
- Que filme é esse senhor Ferreira?
- É uma comédia do final dos anos oitenta menina. Ainda nem você era nascida. É com o Nick Nolte e com o Martin Short. É muito divertido.
- O senhor Ferreira tem um memória muito boa para os filmes, mas para nos chamar para ir à casa de banho, nunca se lembra.
- Eu lembrar lembro-me menina, só que depois esqueço-me.