quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Desculpem, mas não temos açucar mascavado.

Poucos programas me cativam tanto como uma casa cheia de gente. Almoços que se prolongam por lanches e que merecem uma breve ceia de aconchego ao jantar. As pessoas como o prato principal de qualquer serão. Loucos são aqueles que ignoram semelhante iguaria. Receber pessoas em casa é para mim um verdadeiro privilégio. Optar pela minha casa é recusar o parque infantil de mil aventuras possíveis que é o mundo. Como poderia não dedicar-me a quem optou pela minha casa? Sou um anfitrião cuidadoso e atento. Principalmente humilde, porque apesar da fortuna de uma funda, sei bem o quão difícil é reunir os nossos afectos, quando esse Golias mundo ronda a todo o instante.

Existe a crença que o melhor das viagens é na verdade o regresso a casa. Não significa que a viagem em si, seja a constante tomada de consciência desse facto. Se assim o fosse, seria certamente um desperdício de tempo. Eu sou um sortudo pelos inúmeros regressos que realizei. Por alguma razão, e já o referi neste blog, a minha casa poderia ser o átrio das chegadas de um aeroporto. É o meu local preferido do mundo e apenas teria de arranjar um forma de, também aí, receber quem mais gosto. Vejo cada regresso como algo mágico e especial. Pouca importa a distância ou natureza da viagem.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Síndrome da bata branca

O hospital é a casa mãe das emoções. É a casa da partida e, na grande maioria das vezes, a última das moradas. A casa da partida e de chegada são os dois pólos que demarcam a amplitude das emoções. O que acontece de permeio, são apenas singelas aproximações às emoções sentidas quando perante estes dois extremos: nasceu, morreu. Apesar de o regresso à casa mãe estar previsto para que ocorra tarde no tempo, infelizes aqueles que, por infortuna e aleatória programação, têm de regressar precocemente ao hospital. Os profissionais de saúde são os mensageiros dessa miríade de emoções que se vive no hospital. Notícias tristes; alegres; esperançosas.

Grande parte da minha actividade profissional tem sido vivida no hospital. O meu trabalho mostrou-me particularmente bem a realidade do enfarte agudo de miocárdio e do acidente vascular cerebral (AVC). Estes dois graves acontecimentos, são a máscara que cai de uma série de doenças quase que invisíveis e indolores. São episódios súbitos carregados de dramatismo pela urgência a que obrigam e pelo desfecho que podem ter. As emoções que acompanham estes dois eventos médicos são por demais evidentes.

Um profissional de saúde é muito mais para além daquilo que efectivamente faz. A sua simples aparição traduz-se invariavelmente na acalmia do doente. Uma médica confirmou-me um dia aquilo que eu próprio suspeitava que se passaria em situações como o enfarte ou o AVC:  “Os doentes quando vêem a minha bata branca ficam imediatamente mais tranquilos”. Apesar de eu nunca ter passado por nenhuma situação de saúde grave, os relatos que escutei de inúmeros profissionais de saúde e tudo aquilo que observei nos corredores hospitalares, levam-me a crer que as coisas se passarão mesmo assim.

A cor branca numa peça de vestuário com a identidade de uma bata resulta assim numa automática reacção de relaxamento.  Este “síndrome de bata branca” não é de todo exclusivo dos médicos. Por alguma razão, os restantes profissionais de saúde que vemos nos hospitais (salvo excepções locais), estão vestidos de branco: enfermeiros; farmacêuticos; técnicos de análises clínicas. A bata branca está igualmente presente noutras áreas ligadas à saúde como as clínicas dentárias, ópticas ou centros de fisioterapia. O propósito é sempre o mesmo.

Os meus amigos referem muitas vezes a sorte que tenho pelo facto de estar casado com um médica. Naturalmente que reconheço as inúmeras vantagens que esta união oferece, mas esta também traz um grave problema: o síndrome da bata branca no lar. Não são raras as vezes que a minha mulher veste a bata branca em casa. Isto resulta tal e qual como num doente. Quando perante a bata branca dela não consigo mais criticar o pouco picante da comida, escolher o destino de férias que desejo ou ver jogo do Porto da liga dos campeões. Estou por isso totalmente refém da estratégia da bata branca. 

O mais doloroso é que este síndrome da bata branca não funciona no sentido inverso. Um deste dias apresentei-me na cozinha vestido com a bata branca dela e aquilo que escutei foi o seguinte:

 - Essa bata fica-te mesmo bem. Pareces mesmo um talhante. Se não te importas, arranja então tu o frango.

A minha expectativa é que um destes dias ela me veja de bata branca e julgue que sou uma cabeleireira...


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O meu é maior do que o teu

Não creio ser necessário uma grande exposição a respeito da expressão "o meu é maior do que o teu". Este blog tem certos limites que não ultrapassa e, por isso, mais vale deixar certos assuntos dentro do balneário. Por oposição, a comunicação social, põe a nu estes dias, dois despudorados donativos.
O primeiro por iniciativa do nosso governo (25.000 € para a reconstrução da faixa de Gaza) e o segundo por decisão da Câmara de Lisboa (40.000 € para a Fundação Mário Soares). Admito que o pouco que sei sobre estes donativos, advém do conteúdo noticioso, mas isso não invalida que eu me sinta respectivamente envergonhado e chocado.

Os problemas económicos de Portugal são evidentes, mas a nossa ajuda para a urgência humanitária que se vive em Gaza, é, como denominada pelo governo, “simbólica”? Se aquilo que podemos oferecer é um gesto simbólico, porque não optar pelo cacilheiro transformado pela Joana Vasconcelos? Sempre lá estariam uns azulejos dignos de apreciação e poder-se-ía ao mesmo tempo transportar algumas pessoas.
Em momento algum irei colocar em causa a importância da cultura no desenvolvimento de um povo, mas facto é, que li atentamente a apresentação e os estatutos da Fundação Mário Soares, e fiquei subitamente com dores nos rins. 40.000 €? Então que é feito das célebres dívidas dos municípios?

Como referi anteriormente, eu não consigo ter uma visão com critério e devidamente documentada. A única coisa que posso concluir, é que se estivéssemos num balneário, certamente que ouviríamos o presidente da câmara a dizer ao chefe do governo:  - O meu é maior do que o teu. (leia-se orçamento)





Que enchido você é? Faça já o teste.

Há muito tempo atrás dediquei um longo Outono à construção de um puzzle. Apesar de nessa altura ainda não o conhecer ao vivo, o tecto da Capela da Sistina mereceu a minha quase obsessiva dedicação durante aqueles meses. Tal empreitada apenas conheceu paralelo quando, muitos anos volvidos, devorei as Crónicas de Gelo e Fogo (vulgo, Guerra de Tronos). Quem leu os dez livros entenderá como ninguém o significado da palavra sofreguidão, pois dificilmente haverá outra forma de classificar tão empolgante leitura.

Não sou muito de acreditar no espiritismo dos búzios ou das cartas. Para ser o mais franco possível, búzios para mim são feijoada, e cartas são biscas secas e renúncias. O meu cepticismo no mundo do oculto capotou violentamente quando noutro dia me deparei na internet com o seguinte teste: "Qual a personagem da Guerra de Tronos que você é? Faça já o teste". Por várias vezes o neguei, mas a curiosidade foi demasiado forte. Apesar de não ter termo de comparação, mergulhei neste teste como se estivesse perante um pai-de-santo. O resultado do teste apanhou-me de calças na mão: Jaime Lannister.

Aquilo que efectivamente importa enaltecer, é esta possibilidade mágica de sabermos mais coisas sobre nós próprios: que animal,especiaria ou tempo somos; qual o nossa verdadeira profissão ou poder mágico; que música ou filme foi inspirada em nós. Naturalmente, que não poderia faltar, a informação clássica do espiritismo: qual o nosso destino. A resposta a um simples questionário na internet e uma nova vida que começa. No meu caso concreto, após saber que era o Jaime Lannister, reflecti sobre as maldades cometidas no passado. Acredito com todas as minhas forças que no futuro conseguirei redimir-me dos meus pecados.

Para grande pena minha, não existe porém o teste que em minha opinião mais poderia contribuir para o nosso autoconhecimento - Que enchido você é? - Alheira ou chouriça moira? Butelo ou morçela de arroz? Painho ou farinheira? Porque todos nós somos sal, fumo ou sangue. Há quem seja muito porco ou quem tenha tripa grossa. Uns carne gorda, outros praticamente só ossos. Cada qual com a sua cura específica, mas todos pendurados.  

Enquanto aguardo pelo teste, nada melhor do que um puzzle de um tecto repleto de enchidos...



segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O papel higiénico solidário

A decisão sobre qual o papel higiénico a comprar obedece normalmente ao balanço de dois critérios: marca portuguesa e número de rolos. Na passada segunda-feira, um critério maior falou mais alto no momento da selecção:  a solidariedade. Descobri que uma determinada Organização Não Governamental (ONG) da área da saúde, comercializa uma vasta gama de produtos, um dos quais, o papel higiénico. Este apresentava-se assim como um forma extremamente simples de contribuição social, e por isso, não houve qualquer hesitação no momento da compra.

O papel higiénico foi adoptado no lar e nada de relevante haveria a relatar até ao dia em que eu me constipei. Até esse o momento, o papel higiénico tinha apenas sido utilizado para a sua função primária, e nesse capítulo, não existiam queixas sobre a sua capacidade de absorção ou macieza. O problema encontrado foi efectivamente outro: o cheiro. Comecei a utilizar o papel higiénico para limpar o nariz e a princípio tudo também corria bem. Há medida que fui melhorando, e que algum ar começou finalmente a circular dentro das minhas narinas, apercebi-me então do indescritivel mau cheiro do papel.

Apesar de não ter conseguido comprovar na embalagem, acredito que este papel higiénico tenha origem em papel reciclado. A grande questão está em saber que tipo de papel reciclado foi efectivamente utilizado. Facturas do gás e da electricidade? Multas de estacionamento? Recibos de ordenado? Certamente que todos nós, em algum momento, escutamos ou proferimos o desejo de limpar o dito cujo a um destes papeis (é importante deixar claro que é a e não com uma vez que o sentido da intenção é distinto).

Infelizmente, o cheiro do papel higiénico solidário, é por de mais nauseabundo para que eu acredite, que este tenha como base as facturas, multas e recibos. Não que estes não sejam uma verdadeira trampa, mas mesmo assim, ainda estão muito longe da pestilência sentida no papel higiénico solidário. Para grande pena minha, apenas posso concluir, que o papel higiénico solidário advém, nada mais nada menos, de papel higiénico intensivamente utilizado na sua função primária.

O que realmente me intriga, é como raio terão conseguido unir de novo todas as diferentes porções de papel higiénico utilizado. Este processo não deverá ser nada fácil porque não existe um padrão de utilização de papel higiénico. Por um lado, há quem se consiga governar com um ou dois quadradinhos de papel higiénico, e por oposição, há quem coma muito feijoada.

Uma vez que a ONG trabalha com fundos muito limitados, certamente que o processo de produção da sua marca de papel higiénico, é conduzido de forma manual. Este facto, só por si, dá imediatamente a este papel higiénico, o rótulo de solidário. Tal como o papel, espero que todos vós se compadeçam da minha causa, pois ainda faltam 35 rolos...

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A Paciência

Há quinze anos atrás troquei um punhado de cartas com um parente. Passado tanto tempo, acredito hoje, que o termo de tal correspondência, se deveu exclusivamente a mim. Os estímulos da juventude condicionavam a minha vida como se eu já estivesse atrasado no tempo. Não sei o que perdi na infância e na adolescência, para que na juventude sentisse tal urgência em correr. A perspectiva do tempo, que então ignorava, era no entanto para o meu parente, uma declarada preocupação: "O maior óbice está no tempo que, como deves imaginar, no meu caso apresenta um saldo muito baixo".

Não há nada que eu admire mais do que um idoso. A sociedade, como em tantas coisas mais, adianta inúmeros critérios para a definição de idoso. A reforma ou o desconto nos bilhetes de comboio são dois bons exemplos. Estes indicadores poderão ser muito úteis para uma consciência colectiva, mas a definição de idoso, em minha opinião, apenas ao próprio diz respeito.
Eu fui o último familiar a viver com a mãe do meu parente. Numa determinada noite, despertei com um inaudível gemido de dor. O cenário que encontrei na sua casa de banho perturbou-me imenso mas fiz aquilo que tinha de ser feito. Ela chorava baixinho enquanto eu a limpava e a carregava de novo para a cama. No jantar do dia seguinte ela agradeceu-me e pediu-me desculpa. Custou-me mais isso do que a cena do dia anterior. Na casa de banho encontrei uma mulher deitada no chão, mas naquela cozinha encontrei uma idosa a despedir-se de mim.

Os mais velhos são os que mais sofreram. Viram partir grande parte dos seus afectos fossem estes de sangue ou por eles escolhidos. Muitos despediram-se até daqueles de que não era suposto. Folhas verdes arrancadas à árvore da vida, apenas, e só, porque sim. Os mais velhos são também os que mais perdem. Agora precisam de ajuda para carregar o saco das compras ou que alguém lhes recorde o nome dos filhos. Não conseguem mais controlar muitos dos seus gestos. O que é que move os idosos quando tudo lhes parece travar o caminho? A paciência poderá ser a resposta.

Para ser sincero, acredito que a paciência é uma faculdade exclusiva dos idosos. Os comportamentos mais tolerantes que se observam em idades mais tenras são meros laivos de paciência. Apenas um idoso consegue aguardar uma semana inteira por uma visita ou um telefonema. Muitos poderão já não reconhecer a identidade dos afectos, mas continuarão sempre à espera. O pai do meu parente dedicava horas intermináveis aos seus dois baralhos de cartas. O jogo da paciência era a sua companhia. Não sei se o meu parente terá herdado o gosto pelo jogo de cartas. Talvez não tenha tempo e, ainda hoje, aguarde ansiosamente, a carta que nunca lhe escrevi...

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Prato do dia

Poucos minutos após a divulgação dos resultados das eleições primárias de ontem, dei por mim a pensar nos placares das autoestradas que nos indicam o preço dos combustíveis praticados nas diferentes estações de serviço. Em que é que nós condutores beneficiamos das informações sobre os preço dos combustíveis. Vamos por hipótese imaginar um condutor a caminho do Norte de Portugal pela A1. Poucos quilometro antes da estação de serviço de Aveiras terá a indicação sobre  o preço dos combustíveis aí praticado. O mesmo painel terá igualmente a informação relativa às duas bombas de gasolina seguintes. Apesar da velocidade elevada a que se circula na autoestrada, não passará a ninguém despercebido, que os preços dos combustíveis são iguais independentemente da estação de serviço. O que se observa de Aveiras a Antuã é por isso transversal a todas as outra autoestradas. A resposta à questão que coloquei parece-me por isso bastante óbvia: os ditos painéis não servem absolutamente para nada.

Uma vez que o preço do combustível é o mesmo, a selecção da estação de serviço como é que é feita? O cartão de desconto ou a higiene dos espaços, poderão ser critérios relevantes. A distância para a gasolineira será certamente muito importante, principalmente se o tanque de combustível se encontrar na reserva. Eu esforço-me por acreditar que o critério principal, é, na verdade, a comida. Deste modo poderemos finalmente dar uma real utilidade aos placares informativos. Em vez do preço dos combustíveis os painéis apresentariam o prato do dia de cada uma das estações. Se utilizarmos o mesmo condutor que referi anteriormente, este ficará assim a saber que dali a dois quilómetro haverá "bochechas estufadas", em Santarém "ervilhas com ovo escalfado" e que o prato do dia em Leiria será "filetes de pescada". Estas informações poderiam até funcionar como um tónico motivacional para os condutores mais sonolentos: abre-se o apetite, abre-se a pestana.


Os candidatos a primeiro ministro, à imagem do que as gasolineiras fazem com o preço dos combustíveis, não se distinguiram em termos das suas políticas. Se a minha proposta para os placares informativos tivesse sido aplicada às eleições primárias, talvez, pelo menos, tivéssemos ficado a saber como cada um gosta do bacalhau. A única coisa que realmente sabemos, e pegando novamente no peixe preferido dos portugueses,  é que um deles é hoje um “bacalhau com todos” enquanto que o outro, é uma “roupa velha”. Vamos lá ver se não acabam em “bolinhos”...

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O Lado Negro

Ela está sentada à minha frente mas de costas voltadas para mim. Não imagino o que ela estará a estudar, mas consigo perceber inúmeros gráficos num livro aberto. Um marcador fluorescente amarelo sublinha as frases mais relevantes de uma sebenta que parece estar já bastante usada. Ela está demasiado debruçada sobre a mesa. Será por uma questão de postura ou um problema de visão? Impossível saber. Apesar de não lhe ver face, os seus gestos parecem traduzir uma certa ansiedade. Sim, ela está nervosa. Aposto que se tratará da repetição de um exame. Certamente não será a primeira vez que o fará.

Hoje a biblioteca está mais agitada que o habitual. As mesas estão praticamente todas preenchidas. É um claro sinal que o Verão terminou. Setembro é a época de recurso, os primeiros trabalhos de grupo, o retomar daquilo que se interrompeu nas férias. Há um ruído que preenche toda a sala de estudo. Cada mesa contribui com a sua parte. Eu próprio colaboro nesta peculiar canção urbana através do teclar descompassado deste texto. A música que se liberta dos meus auscultadores barra a entrada a todo este ruído. Basta olhar os gestos dos que me rodeiam para compreender o nível de agitação que se faz sentir.

Apesar de se encontrar numa das extremidades da sala de estudo, está claro que este barulho lhe é insuportável. A cada momento, volta-se para trás e prospecta toda a audiência em busca da origem do alvoroço. O seu olhar é o bramir do grito de fúria que tem de calar. Levanta-se e vai repreender um grupo de rapazes que partilha uma mesa. A batalha com o estudo parece dependente do sucesso da sua demanda pelo silêncio. Olha novamente para trás. Duas vezes, quatro vezes. O seu olhar é pólvora fulminante

Começo a ficar tão exasperado quanto ela. Para mim pouco me importa que esteja muito ou pouco barulho. Não consigo é suportar os seus movimentos. Apesar de estar focado neste monitor é impossível abstrair-me do que se está a passar mesmo à minha frente. Cada vez que ela se volta para indagar a sala, os nossos olhares esbarram de forma instintiva. Sete vezes, dez vezes. Neste momento ela poderia até ser a mulher mais bonita do mundo. Só quero que ela se vá embora ou que pare quieta de uma vez. Onze vezes, vinte vezes. Espero mesmo que ela reprove na porcaria do exame. Não suporto mais esta constância de movimentos na minha direcção.

Levanto-me com a intenção de educadamente a alertar para o quanto me está a incomodar. Não me apercebo que o meu espírito está já tomado pelo meu lado mais negro e não vou a tempo de evitar a tragédia.

"- Pare de olhar para trás. Daqui não leva nada. Sou um homem casado".

Não mais se mexeu.
   

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Professor Balança

Os legumes e frutas mais frescos chegam sempre com a manhã. Isto é tão verdade na cidade como no campo. Se numa encontramos prateleiras refrigeradas e arcas frigoríficas, na outra temos as gotas do orvalho e a colheita pela alvorada. Já aqui dei conta da minha preferência, mas infelizmente, o campo é demasiado longe da cidade. Nunca houve uma real aposta em rodovias destinadas a tractores e carroças, apesar, por exemplo, dos muitos burros que circulam nas estradas. A média de idades das pessoas que acorrem pela manhã ao supermercado a que vou ultrapassa largamente os 70 anos. Na grande maioria das vezes, o supermercado ainda nem abriu, e já por lá aguardam inúmeras rugas e artroses.  Estou em crer que a motivação principal para tão cedo despertar, será comum entre todos: a frescura das frutas e legumes. 

Numa destas manhãs fomos todos surpreendidos pela ausência do funcionário que se encarrega de pesar as frutas e legumes. Ao invés do dito funcionário, o supermercado disponibilizou uma balança toda moderna em que são os próprios clientes a tratar do assunto. Uma vez que os velhos apalpam as frutas e legumes muito mais do que eu, fui a primeira pessoa a chegar junto da balança. Não precisei de qualquer livro de instruções e de imediato comecei a pesar as muitas frutas e legumes que compunham o meu cesto. Apesar da minha agilidade de movimentos, num instante me vi rodeado por imensos velhotes. Os seus olhos, enquanto tentavam acompanhar os meus movimentos, traduziam o pânico da ignorância. Algumas vozes começaram a ouvir-se: “Ai que complicado!”; “Este moço é tão rápido.”; “Onde estará o funcionário?”.


Não sei se realmente precisaria de outras coisas, mas depois de ter pesado tudo o que tinha, facto é, que permaneci na secção das frutas e legumes. A confusão rapidamente estalou em torno da balança pois ninguém sabia como proceder. Aproximei-me tranquilamente do já numeroso grupo e disponibilizei-me a ajudar. Os sorridentes velhotes só desarmaram quando colei a última etiqueta num alho-francês. Pelo meio, o pico máximo da boa disposição quando lhes mostrei que o melão estava classificado como legume. Um dos velhotes apelidou-me de “Professor Balança”, nome esse que teve a concordância de todos. Amanhã preciso de ir novamente ao supermercado. Será que terei novos alunos? 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Mulheres fatais dispostas a tudo

Chegaste à minha vida adornada em tons de antracite. Desses três dias em que estivemos juntos, recordo ainda o teu vestido preto. Apesar da invulgar beleza dos teus traços, odiei-te desde a primeira hora. Não te sei dizer o que mais me repugnou, se o teu amargo interior ou se o fascínio que parecias suscitar, em todos os demais. Acreditei que o facto de coincidirmos aqueles dias em casa do meu irmão, se teria tratado apenas de um infeliz acaso. Nunca pensei que a tão breve prazo te encontraria novamente.

Comecei a esbarrar contigo em todos os locais que frequento, como se de repente tivesses decidido tomar a minha vida como tua. Não sei porque o fizeste, mas aposto que nunca terias imaginado, que alguém um dia, te poderia negar. Foram inúmeras as vozes que clamaram junto de mim em teu favor. Gabaram a elegância dos teus movimentos, a subtileza dos teus perfumes. Como se fosses a incarnação perfeita da espuma que baila no colo das ondas do mar. Particularmente enalteceram a riqueza das tuas múltiplas personalidades. A cor do teu vestido como o reflexo do que és em cada momento. Toda uma explosão quando de azul-escuro, mais delicada quando de vermelho. És a actriz que em palco representa aquilo que cada um dos espectadores intimamente quer ver. És a mulher que passeia junto do actor de cinema mas que todos os dias aconchega um qualquer plebeu. A plateia adora-te por isso. Por essa porção de glamour que trazes às suas vidas simples.

Hoje pergunto-me se algum de nós estaria preparado para a tua chegada. Eu claramente que fui apanhado desprevenido. Ingenuamente acreditei que serias apenas uma moda passageira e que um dia a vida voltaria ao de antigamente. O quanto estava enganado. Para além de não desapareceres, começaste a ser objecto de reproduções. O mundo tomou-te como referência e foram muitas as que quiseram assemelhar-se contigo. Com os mesmos jeitos, os mesmos equívocos. Mulheres fatais dispostas a tudo. Tenho dificuldades em recordar bofetada semelhante, aquela que senti, quando conheci uma das tuas pseudo-imitações. Não me atrevi sequer a censurá-la, pois ambos sabemos que a culpada és tu e eu nunca te irei perdoar por isso. O mundo toma-te por uma coisa que não és. Não me cansarei de gritar ao mundo que és um produto corrosivo...nunca serás um café... odeio-te Nexpresso...

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Cavalheiros em cuecas

Hoje despertei com um certo incómodo a nível da ventre. Não creio que exista razão para alarme porque este mal estar parece ser da parede abdominal. Ainda bem que assim o é, pois quanto maior a dor muscular, mais perto estarei do meu objectivo: “obterá olhares gulosos femininos.” Cruzei-me com esta excitante premonição numa daquelas revistas para homens. Acompanhei as três últimas edições da mesma revista e estou ansioso que saia o próximo número. Compreendi o quanto nós homens somos obcecados pelos nossos abdominais. As capas das últimas três edições da revista deixam isso muito claro: “consiga o six pack que sempre sonhou”, “abdominais definidos em 28 dias”, “diga adeus à barriga com este novo super plano”. Apesar de um cavalheiro em cuecas invariavelmente ocupar grande parte da capa da revista, estes arrebatadores títulos fazem muito mais por um café do que um cheirinho ou um pau de canela.  

A revista sugere inúmeras dicas para um abdominal perfeito. E para quem tem dúvidas sobre o aspecto do mesmo, não é apenas na capa da revista que se encontra um bom exemplar. Na verdade, se apenas tivéssemos em conta o aspecto visual da revista (vulgo, número de homens em cuecas), eu atrever-me-ia a dizer que a revista talvez fosse mais indicada para mulheres. Embora eu apenas tome um café por dia, pelo pouco que li do conteúdo da revista, não tenho qualquer dúvida sobre qual o público alvo: machos. A testosterona é a matriz comum a todos os artigos. Não é exagero nenhum aquilo que estou a dizer. Pode é não ser imediato, mas a testosterona está lá sempre. A última edição da revista sugere por exemplo uma inocente receita de “camarão com papaia e iogurte”. Coza o camarão, corte cubinhos de papaia, misture a rúcula...Não encontrei um pingo de testosterona na ficha técnica da receita mas depois olhei com atenção para a fotografia: o preparado era servido dentro de um abacate e não de uma papaia, e para além disso, era ainda perceptível a presença de cubinhos verdes de abacate no próprio preparado. Reli atentamente a receita e percebi que teria havido um erro na transcrição da mesma. Acredito piamente que a substituição do abacate pela papaia terá sido feita de forma intencional. A papaia é a necessária intromissão da testosterona na história pois não há fruta a que os machos reajam mais. Pelo modo como esta se lê. É como se tivesse um hífen: “papai-a”.


Apesar do claro engano na receita, parece-me que a substituição do abacate pela papaia poderá efectivamente resultar melhor. É uma receita muito pouco calórica e que em muito poderia contribuir para a definição dos meus abdominais. Conseguiria assim antecipar um olhar guloso feminino por parte da minha mulher mas ao mesmo tempo, parece-me demasiado arriscado cozinhar este prato. Mesmo que apresentasse o prato como “camarão com mamão e iogurte”, ela poderia sempre desconfiar sobre as minhas leituras na biblioteca. Poderá demorar um pouco mais, mas fico-me pelas dores do exercício físico...tudo menos ter de lhe falar dos cavalheiros em cuecas... 

terça-feira, 26 de agosto de 2014

As dores do crescimento

Eu estava a tentar perceber se existiriam alforrecas na água quando avistei o Pedro a descer as escadas que davam acesso à piscina natural. Embora acompanhado pela sua família, num instante se libertou para junto do Gordo e dos outros rapazes. Claramente todos se conheciam muito bem, mas era óbvio que o Pedro gostava muito do Gordo. Poucos minutos após terem desaparecido, os rapazes regressaram em grande algazarra para o local em que eu me encontrava. Estavam a jogar "à apanhada" e cabia ao Pedro a difícil tarefa de apanhar quem quer que fosse. Os rapazes quando em terra firme se viam apertados pelo Pedro lançavam-se à água. A habilidade dentro de água era a garantia de não serem apanhados. É que o Pedro corria bem mas nadava mal. Os rapazes provocavam o Pedro com mergulhos cada vez mais tardios e próximos dele. Após inúmeras perseguições aquáticas o cansaço e desânimo tomaram conta do Pedro.

Era uma cena difícil de ver e da qual eu parecia ser o único espectador. Pensei alterar o rumo dos acontecimentos a favor do Pedro. Um mergulho inocente a cortar a trajectória de fuga de um dos provocadores teria sido o suficiente. Não sei bem o que terá pesado mais na minha decisão de não intervir. Se a súbita presença de várias alforrecas à tona de água ou se o reconhecimento do quão importante são as dores do crescimento. A minha mãe conta que na noite do meu primeiro acampamento eu estava aterrorizado. Implorei-lhe em lágrimas que me levasse com ela para casa. Partiu-lhe o coração deixar-me ficar no acampamento, mas eu teria de passar por aquilo. Não sei como teria sido a minha vida sem aquela noite naquela tenda. O que apenas sei, é que naquela tenda, fiz amigos para toda a vida. 
A minha resistência em não intervir foi novamente testada poucos minutos depois. O Rodrigo calculou mal o tempo de salto e foi apanhado pelo Pedro. Qualquer pessoa que já jogou à apanhada perceberá o que aconteceu em seguida. O Rodrigo e o Pedro debateram-se no meio da água num "toque e foge" a dois. O Pedro foi o último a tocar e pôs-se de imediato em fuga. O Rodrigo, ao invés de perseguir o Pedro, apenas gritou, “É o Pedro”. O Pedro em fuga respondeu, “É o Rodrigo”.


“É o Pedro.” “É o Rodrigo.” “É o Pedro.” É o Rodrigo”. De ambas as margens se clamava e o jogo permanecia interrompido para grande desespero do Gordo. A tristeza estava estampada na cara do Pedro. Por momentos temi que chorasse. Apesar de as idades serem semelhantes, o Pedro era claramente o mais infantil do grupo. Depois de largos minutos neste impasse, o Pedro assentiu em ser ele novamente a apanhar. Não sei o que o terá motivado a tomar aquela atitude. Nesse momento pareceu-me ligeiramente mais crescido. Assim que o jogo recomeçou, o Gordo deixou-se teatralmente apanhar pelo Pedro. Não se seguiu o tradicional "toque e foge" entre os dois porque o Gordo decidiu dar caça ao Rodrigo. O Pedro sorria penhasco acima. Eu dei o meu mergulho...as alforrecas tinham desaparecido...

domingo, 20 de julho de 2014

Ópera cómica em 3 actos

A maior vantagem de uma cidade pequena é sem dúvida alguma a sua própria dimensão.Tudo está próximo independentemente de quão na periferia da cidade possamos estar. O hospital, o mercado, o banco, a antiga professora de química, aquela jeitosa por quem suspirávamos na catequese... !  Após o jantar de ontem decidi fazer uma caminhada pela cidade. Verão e Passeio, mesmo numa cidade onde a fria nortada é a autoridade em funções, pedem calções e sapatilhas. Optei por fazer um pequeno desvio na rota habitual para ver a remodelação do Cine-Teatro Garrett, que após inúmeros anos encerrado, abriu novamente as portas aos aplausos do público. Assim que me encontrei diante do edifício uma cara amiga deu-me conta, que dali a uma hora, se realizaria mais um concerto do Festival de Música. Comprei o bilhete de imediato e nem me dei ao trabalho de ver o programa para aquela noite. Vários anos a assistir a tal ciclo de concertos eram a garantia suficiente que teria uma bela noite de música clássica.

Ainda tinha imenso tempo até ao concerto e continuei por isso o meu passeio. Chegado a uma grande praça junto à praia encontrei uma multidão de gente. Centenas de pessoas com trajes de ginásio seguiam os ágeis movimentos de um rapaz que se encontrava em cima de um palco. A coreografia e a música não deixavam margem para dúvidas:  zumba. Assisti divertido ao empenho e alegria de toda aquela gente, mas a minha opinião sobre a zumba permaneceu igual: sem caneca não é zumba. Após uma breve pausa no Café de sempre, regressei ao Cine-Teatro. Na subida vertiginosa para tentar assegurar um lugar na primeira fila do primeiro balcão, apercebi-me de 3 coisas: muitas gravatas, ex-ministros, demasiados degraus. Estes últimos explicam-se pelo facto de já não existir o antigo primeiro balcão. As gravatas e o ex-ministros talvez se expliquem com o que passado alguns minutos se anunciou: “La Spinalba ovvero Il vecchio matto – Ópera cómica em 3 actos”.

O público estava todo devidamente aperaltado para a ópera que iria principiar no Garrett. Calções e sapatilhas eram mais apropriados para a zumba que se exercitava na praça. Imagino que a professora de química e a jeitosa da catequese, sentadas duas filas à minha frente, pensariam o mesmo. O sentimento de vergonha desapareceu assim que o cravo e o violoncelo começaram a afinar os restantes instrumentos. Não sei se terão sido as minhas pernas nuas ou as sapatilhas, mas facto é, que apesar de existirem inúmeras pessoas conhecidas, durante o intervalo, não tive qualquer encontro imediato. A ópera terminou sob uma chuva de aplausos. Inesperadamente, na rua também chovia...não esperei para ver como fariam com as saias travadas...

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Trovoada

As torradas da Biblioteca da Póvoa de Varzim em bom rigor não poderão ser consideradas como verdadeiras torradas. Sim senhor são compostas exclusivamente por pão, confirmo a utilização da torradeira e garanto o clássico sabor a manteiga. O problema é temporal: o pão utilizado nessas torradas, é o do próprio dia. E este facto tem obviamente um impacto determinante no resultado final. Conhaque é conhaque, champanhe é champanhe. As melhores rabanadas são as do dia seguinte à fritura e o peixe para a grelha só mesmo o apanhado naquele dia. Muitos mais exemplos poderia apresentar que validam a importância da questão temporal. Fica por isso claro que não se trata de uma embirração da minha parte para com as supostas torradas da Biblioteca da Póvoa de Varzim. Os idos tempos de estudante há muito já lá vão.  E boa verdade não me recordo da última vez que terei entrado em tal espaço municipal. Apesar de lembrar as torradas do modo que descrevi, admito que entretanto possam ter havido melhorias a nível da cafetaria. Nem que mais não seja, para podermos chamar as coisas pelos nomes correctos.

A minha semana laboral tem lugar na Biblioteca de Oeiras onde não existe qualquer cafetaria. Duas máquinas de snacks e uma máquina de café, asseguram as necessidades humanas fundamentais a quem lá anda. Estão igualmente disponíveis duas casas de banho para a concretização de outras necessidades básicas. Curiosamente, e abro aqui um parênteses,  as máquinas de alimentação, encontram-se localizadas a menos de quatro metros das portas dos WC. A justificação para tal proximidade parece-me óbvia: uma coisa pode levar à outra ( independentemente de qual a primeira). O  que aqui efectivamente me interessa relatar diz respeito a outra necessidade fundamental: o sono. A satisfação desta necessidade básica é a verdadeira missão de qualquer biblioteca. A Biblioteca de Oeiras, neste capítulo, é um modelo de excelência a copiar. Como se já não bastasse o silêncio aterrador da pesada  literatura e os gélidos olhares das bibliotecárias perante o mínimo espirro, a Biblioteca de Oeiras, para além de mesas e cadeiras, disponibiliza pufes para as pessoas estirarem. Mais uma vez, também a localização dos pufes, foi estrategicamente pensada: nos tranquilos corredores que existem entre as diversas estantes de livros. Os pufes são por isso altamente procurados por quem necessita de satisfazer uma das suas necessidades básicas.

Como não tenho muitas ideias quando estou a dormir não vejo qualquer beneífio na utilização dos pufes. Não só não utilizo os pufes, como também levo as minhas refeições para a biblioteca. As ideias que tenho, umas mais parvas que outras, apesar de serem imensas, não preenchem naturalmente, a totalidade da minha atenção. Já vou reconhecendo por isso algumas das caras que frequentam a Biblioteca. Há um rapaz que todos os dias se estende no mesmo pufe. A mesa em que me costumo sentar, é próxima o suficiente do pufe no qual o rapaz invariavelmente se encontra, de modo que já conheço alguns dos seus movimentos. Para além de um computador portátil no colo e de meia dúzia de cardernos pelo chão, pouco mais há a apontar. Não pude foi igualmente deixar de reparar, que o rapaz do pufe, é um adepto confesso das máquinas de snacks e café.  

Uma desgraça poderá estar por isso prestes a acontecer. Na verdade, prestes a fazer-se ouvir. A associação, da malemolência própria do pufe, com a qualidade dos géneros alimentares daquelas máquinas, certamente resultará, num muito pouco mudo, processo digestivo. A vergonha desta sonoridade poderá justificar uma descarada mentira. Afinal de contas, qualquer pessoa que já tenha experimentado um pufe, tem noção da música que este sugere a cada movimento nosso. Seria por isso muito fácil, sugerir que a trovoada intestinal, não fosse mais do que um acorde musical do pufe. O problema é que eu estarei por perto... e se não deixo passar as supostas torradas, certamente que não será necessário um relâmpago para comprovar o fenómeno da trovoada...

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Alma de esquerda a circular pela direita

Um dia, algures no Sul do Laos, aluguei uma mota. Percebi que andava muito bem para a frente e para trás, mas que me era impossível andar de um lado para o outro. Na verdade até era possível, pois bastava-me empregar a técnica que utilizava quando desejava andar para trás: parar a mota, sair da mota, virar a mota para trás, entrar na mota, conduzir para a frente. Motorizadamente falando, não me consigo inclinar nem para a direita nem para a esquerda, o que na prática significa, que não sei curvar. Rapidamente compreendi que a minha técnica de fazer as curvas dificilmente me faria chegar longe. A resolução para esta situação surgiu rapidamente: oito minutos após o aluguer da mota, aluguei um condutor para a mota. Os automovéis, ao contrário das motas, não obrigam a qualquer inclinação por parte do condutor. Uma vez que este facto não é do conhecimento geral  e que este blog tem poucos seguidores, poderemos continuar alegremente a visualizar, não raras as vezes, aquando de uma subida de um automóvel, o respectivo condutor inclinado para a frente.

Apesar das enormes tolices que reconheço que fiz enquanto recém encartado, creio que nunca me terei inclinado para a frente. Os tempos de grumete ao volante já lá vão, e apesar  de poder estar errado, creio que hoje em dia, sou um condutor bastante fiável. Esta era a minha convicção até há semana passada. Apesar de não ter acidentes de viação a registar, sinto-me desde então, um pior condutor. Admito que algo de inexplicável possa ter ocorrido dentro de mim, mas no imediato, tenho de atribuir as culpas ao Renault Twingo. Eu e este carro somos amantes ocasionais há muito tempo, mas agora que aumentamos a frequência dos encontros, as coisas parecem começar a azedar. Até há semana passada, os nossos encontros foram sempre marcados pela presença da proprietária do carro. Tal como dois namorados na presença da mãe, os encontros até então, foram bastante moderados em termos de manobras. O problema é que agora o Renault Twingo exige demasiado de mim. O tipo de carro a que estava habituado fazia tudo por mim: regulava o ar condicionado, accionava o limpa pára-brisas, acendias os faróis... . Eu apenas tinha que desfrutar da companhia do automóvel. Se de uma amante se tratasse, era a mulher-a-dias perfeita. O Renault Twingo é uma verdadeira dondoca.


O que mais me fere é estar agora limitado a circular pelo lado direito da faixa de rodagem. Alma de esquerda a circular pela direita. Não existe castigo maior para um condutor. Creio que não conseguirei suportar esta situação por muito mais tempo. Em algum momento terei de terminar esta relação. Era suposto uma amante fazer-me sentir bem, mas sinto-me cada vez pior. Mas talvez seja melhor aguentar, pois o autocarro da rua é a serventia da casa... . Regulo o ar condicionado, acciono o limpa pára-brisas, acendo os faróis... qualquer dia estou a inclinar-me para a frente...

sábado, 5 de julho de 2014

Ainda que o carvão acabe



A minha empresa está prestes a entrar no seu quinto dia de existência. Estes quatro primeiros dias foram muito intensos, e por isso, nada melhor que o fim-de-semana para recuperar as energias.  Na verdade, apesar da sua precocidade, a empresa já começa a mostrar alguns sinais de desgaste. É que não é muito fácil ser uma empresa. Felizmente que o dicionário nos oferece alternativas linguísticas à palavra empresa. O cometimento ousado Sou EU. Acumulo por isso os cargos de Presidente, Director Financeiro, Director de Marketing, Director de Vendas e ainda, de Trabalhador. Numa lógica Lusa, parece-me que a empresa está bastante equilibrada no que diz respeito à proporção de cargos directivos. Até ao momento estou bastante satisfeito com a performance de todos os departamentos, mas começo a sentir, que mais dia menos dia, precisarei de um Director de Recursos Humanos. Director, pelo que está descrito em cima é algo que naturalmente aprecio. Humanos, pela falta comprovada de Marcianos, continuam a ser os meus seres vivos favoritos. Agora, Recursos, detesto.

Em termos da sua origem, não há dúvida que somos um recurso da biosfera. Ainda que o carvão acabe, poderemos assim, quem sabe um dia, continuar a nossa existência, a olhar para uma grelha de sardinhas. Mas numa perspectiva obviamente diferente: de baixo para cima. Será isto aquilo de apelidam de vida eterna? Humm, talvez seja melhor não ir por aí… . A taxa de natalidade actual coloca também algumas interrogações sobre se nos poderemos efectivamente considerar como recursos renováveis. Pelo caminho há sempre algumas recauchutagens que podem ser feitas (zumba, silicone, Professor Karamba...). Umas são mais impactantes que outras, mas em termos de renovação propriamente dita, acho difícil. E depois há a própria questão de gestão inerente ao recurso. Como é que funciona? Da mesma forma como o chefe do meu cunhado que lhe dá instruções para ir ver o que se passa com a torre 12 do parque eólico X, o mesmo se passaria se fosse um Recurso Humano avariado? Na verdade até pode ser que as coisas se passem mesmo assim, e eu terei por isso demorado 34 anos a perceber o significado da expressão, “tens um parafuso a menos”.

Não é de estranhar que o meu cometimento ousado esteja um pouco relutante na contratação de um Director de Recursos Humanos. A empresa é demasiado humanista para permitir que os seus colaboradores sejam geridos como um outro qualquer recurso. Se não houver pinhas ou cavacos disponíveis, toca a meter acendalhas e carvão? As coisas não podem ser feitas assim porque as sardinhas ficam com o cheiro da combustão. A electricidade foi-se abaixo, o cilindro só aguentará um duche, e por isso só um é que se lava? A minha mãe em pequenos dava-nos banho aos três e ainda hoje em dia, tomo muitos duches a dois (mas não com os mesmos). O ouro está pelos olhos da cara e por isso esquece lá as alianças? Aonde é que já se viu, andar depois de casados com os dedos a nu?!

Os Humanos são de tal forma únicos que dificilmente algum dia se conseguirão fazer versões melhoradas com qualidade suficientemente decente, que valha a pena abrir os cordões à bolsa e trazer um para casa. O problema está é na forma de os gerir. Eu na verdade, a iniciar o quinto dia da empresa Sou Eu, já estou efectivamente por tudo e preciso mesmo de ter alguém para administrar os Humanos. Mas quem é que poderá ser? Olha que se lixe, afinal de contas são só Humanos: 

Comunicado: Orgãos Sociais para o próximo milénio do cometimento ousado Sou Eu
João Ferreira – Presidente, Director Financeiro, Director de Marketing, Director de Vendas, Trabalhador e Director de Recursos Humanos.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Santa Luzia

A despedida de solteiro de um dos meus grandes amigos incluiu uma peregrinação ao Santuário de Santa Luzia em Viana do Castelo. O objectivo não foi uma tentativa de expiação de eventuais pecados cometidos, mas apenas e só, uma pausa no programa habitual das nossas despedidas de solteiro: um grelhador, peças de carne de porco, bebidas várias. A caminhada não foi muito longa uma vez que a casa alugada para o efeito, se situava numa freguesia nas proximidades da cidade. Para ser mais exacto, a peregrinação constituiu-se pelos poucos metros que distava o grelhador do carro que nos conduziu monte acima e pelos degraus que davam acesso ao Santuário, junto do quais, o carro ficou aparcado. Admito que não seja uma peregrinação da qual me possa orgulhar muito, mas ao menos, ainda cá estou para escrever esta introdução. Não sei o que se poderia ter passado no meu fígado se naquela tarde de sábado, ao invés de irmos ao santuário, tivéssemos continuado a comer carne de porco. Se fosse frango ainda vá que não vá, mas porco grelhado, é cirrose certa.

Santa Luzia encontrou-me em ébria convalescença, e talvez por isso, aquilo que mais me impressionou, não foi a solenidade inerente ao culto e à fé, mas sim, a vista que se consegue do zimbório da basílica. Olhei principalmente para Sul e tenho a certeza que consegui identificar outro Santo: Bartolomeu do Mar. Aquele que me ensinou a nadar na sua praia. Os mais crentes afirmam até, que foi ele que me salvou. No mínimo, não posso ignorar, que as graves alergias que sofria na meninice desapareçam poucos dias após o banho santo, o galo preto e as três passagens por debaixo do andor de São Bartolomeu do Mar. Mas de uma coisa tenho a certeza absoluta: se não fossem os Verões intermináveis a praticar nas águas daquela praia, nunca me teria safado, quando um dia, uma sorrateira corrente, me tentou levar com ela, por entre um solitário litoral dos arredores de Nha Trang no Vietname. No topo da basílica de Santa Luzia recordei ambos os areais. O areal da confiança que preenchia o menino ao engolir as primeiras águas salgadas sob o olhar atento da família e o areal do medo, que inundava o homem ao debater-se contra a forte correnteza sob um silêncio profundo de solitude.

Ontem subi a um sétimo andar. Depois de um terno abraço, conheci um pequeno templo que até então ignorava. Depois de inúmeros dias passados naquele sétimo andar, finalmente me apercebo da existência daquele acolhedor espaço. Não é no entanto de estranhar, pois o que lá tinha ido fazer nas vezes anteriores, foi tudo menos andar a conhecer a casa. Muito poderia dizer sobre isso, mas fico-me pelo malabarismo, pois afinal de contas, foi lá que percebi que poderia ter feito carreira como malabarista. Eu e todos os habitantes que comigo partilharam aquele sétimo andar. E só quem tentou um dia fazer malabarismo percebe que o segredo é tratar todas as bolas de igual forma. Mesmo que uma pareça presa à mão e a outra vagabunde pelo ar.

Ambos os areais são essências à nossa existência. Podemos gostar de olhar mais para um, tal como eu o fiz no topo da basílica. Não podemos é ignorar o outro areal, porque na vida, tal como no malabarismo, o segredo está no movimento continuo. Em algum momento iremos necessariamente tocar todos os diferentes areais. E no curto espaço de tempo que um destes areais se encontre na nossa mão, teremos de tirar o máximo partido desse momento, antes de o ver elevar-se novamente no ar.

Aquele sétimo andar é torneado a enormes janelas. A vista é quase tão bonita como a do zimbório do santuário em Viana do Castelo. E também lá vive uma Luzia. Santa não sei, Wittmann, de certeza. Não existe peregrinação melhor do que a ida àquele sétimo andar. A seguir a esta só mesmo todas as outras romarias tradicionais...desde que antecedidas de peças de carne de porco...para lamento do meu fígado..