domingo, 9 de novembro de 2008

Pedras da calçada

Não gosto de shoppings. A sua própria génese é um autêntico desafio às Leis da Natureza. Há a época das cerejas, dos míscaros e da marmelada. No que toca aos shoppings, é vê-los nascer todo o santo dia. A este ritmo, um dia destes, só mesmo paredes meias com um mais crescido, é que será possível parir mais um destes meninos.
Tudo nos shoppings me enerva. A confusão, as luzes, o cheiro a batata frita. Mas se há coisa que me aborrece muito mais, é o que sobra para além das paredes de um shopping: a triste agonia de um deserto. As ruas das cidades vazias de gente e os edifícios nobres a sobreviver da renda de uma loja dos chineses. Não será de admirar por isso, que daqui por uns anos, encontremos no Monopólio a Avenida dos Descobrimentos do Centro Comercial Colombo a substituir por exemplo, a Rua de Santa Catarina do Porto.
Para mim, a grande diferença de uns shoppings para os outros não está na presença da loja X ou Y, mas sim no tipo de chão. Acho verdadeiramente genial os shoppings que saúdam as solas dos nossos sapatos com calçada portuguesa. Eu não sei se o Tino de Rãs tem algum interesse económico nisto, mas seja como for acho isto delicioso, sobretudo porque não faz sentido nenhum.
As pedras da calçada que conservam em si tantas histórias da cidade, aprisionadas agora num jardim zoológico de escadas rolantes. Em boa hora decidiu António Gedeão escrever a “Calçada de Carriche”. Porque retrata o pulsar da vida na liberdade das pedras da calçada. Portuguesa ela ou simples pedras marteladas em cima de areia. “Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada...”. Palavras amplificadas pela voz da Odete Santos que um dia ouvi no conforto da minha alcatifa. O sal no saleiro, o açúcar no açucareiro, as pedras da calçada nas ruas da cidade e as gentes a caminhar sobre elas. É pedir muito? Talvez quando começarem os saldos...

Um filme inesquecível

Hoje deu-me para ouvir “The Ultimate Collection - Barbra Streisand”. Depois de correr uns programas na minha base de dados mental, cheguei à conclusão, que a única recordação em concreto que tenho desta senhora, é a sua performance no majestoso “Príncipe das Marés” junto de Nick Nolte. Há medida que o CD percorre o seu caminho, vai aumentando aquela sensação de “eu conheço isto de qualquer lado”. Com excepção da música “Memory”, creio que todos os meus palpites têm como som de retorno a palavra “Água”, à imagem da tradicional Batalha Naval.
O ano passado fui às Feiras Novas a Ponte de Lima. Entre concertinas, farturas e sarrabulho, cruzei-me com inúmeras pessoas conhecidas, entre ódios juvenis até aos amigos de sempre. Cruzei-me com um casal que me cumprimentou com um “Olá” ao qual eu retribuí com um “Então, tudo bem?”. E ficou por aí. Fiquei a pensar demoradamente de onde raio é que eu os conhecia, mas sem sucesso. Este ano fui novamente às Feiras Novas e a cena repetiu-se mas com uma diferença abissal. Fui eu que lhes disse “Olá” ao qual eles retribuíram com o “Então, tudo bem?”.
É inacreditável o quanto nos esquecemos das coisas. O nosso cérebro faz a limpeza das nossas recordações a seu belo prazer. Compreendo que o mesmo argumente “A última vez que mexeste nestas memórias ainda o João Gil não tinha a madeixa branca”, mas seja como for, irrita-me um bocado.
Estas pontas soltas que o nosso cérebro deixa por aí, nada mais são do que títulos de cassetes cujas fitas magnéticas há muito se desintegraram. Memórias marginais que não têm relevância para a nossa história. È o nosso cérebro a ditar as suas leis.
Creio no entanto que temos algum espaço de manobra. Só temos de trazer constantemente para o mundo dos vivos algumas dessas memórias. Tenham elas importância ou não. O filme “Os 3 fugitivos” nada acrescenta à minha vida. Mas a quantidade de vezes que eu falo deste filme, fará certamente com que demore muito muito tempo, até que me esqueça do mesmo. Já me estou a ver daqui a 50 anos enfiado num lar a falar com uma enfermeira boazona enquanto ela me está a dar banho:
- Ó menina Carmo acha que pode por hoje de tarde o filme “Os 3 fugitivos”?
- Que filme é esse senhor Ferreira?
- É uma comédia do final dos anos oitenta menina. Ainda nem você era nascida. É com o Nick Nolte e com o Martin Short. É muito divertido.
- O senhor Ferreira tem um memória muito boa para os filmes, mas para nos chamar para ir à casa de banho, nunca se lembra.
- Eu lembrar lembro-me menina, só que depois esqueço-me.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Um manguito num piscar de olhos

Estou com a sensação que o gesto de "fazer um manguito" está a desaparecer. Claro que é sempre fácil afirmar uma coisa destas assim de abuso, mas também não estarão à espera, que eu apresente um estatística sobre este matéria, pois não? Quais as razões para que estejamos então a esquecer o mítico gesto do Zé Povinho? Numa altura de crise como a que agora atravessámos (com restaurantes cheios, carros topo de gama e 2 a 3 telemoveis por cabeça), seria natural haver uma maior incidência deste gesto. Mas o que é facto, é que rara é a vez, que sou surpreendido com a observação de um manguito.
Hoje em dia é extremamente comum piscar o olho a alguém. Por tudo e por nada aqui vai disto: "To Jó, muito prazer." - piscadela. "Topa-me os sapatos da Gina" - piscadela. "Eu se fosse a si escolhia feveras grelhadas em vez de sardinhas, se é que me está a compreender" - piscadela. E já para não falar dos sms e e-mails com o ponto e virgula e fechar parentesis ;)
Antigamente o piscar de olhos era um gesto proibitivo e tinha um verdadeiro encanto, sobretudo na dança do enamoramento. Recordo as palavras da minha Avó Hermínia quando me via por casa aos Domingos à tarde "- Vai para a baixa fazer olhinhos às raparigas".
O desaparecimento do manguito e a banalização do piscar de olhos. Estarão estes dois factos relacionados? Estou convencido que sim. Não sei quem é que está por detrás disto, mas não pode ser inocente, o facto de perdermos um gesto de protesto, só porque ganhamos o usufruto de um gesto de cumplicidade.
Creio somos imensamente assim desde que nascemos. Quando uma criança chora desalmadamente porque quer a mãe ou porque tem fome, o que fazemos nós? Tentamos distrai-la com um brinquedo, com uma canção ou com uma palhaçada. Quando estamos no desemprego ou temos condições precárias, lá nos entretemos com a equipa nacional de futebol. Quando 6 milhões de benfiquistas perdem (repare o leitor que aqui utilizei a terceira pessoa) campeonatos atrás de campeonatos, lá se distraem com a Carolina Salgado. Quando andamos desencantados com a nossa vida lá nos animamos a sonhar com a vida que os famosos levam.
É engraçado. Perder um manguito num piscar de olhos. Ou muito mais que isso...

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O corpo comanda a vida

Sou apaixonado por cinema. Na compartimentação que todos fazemos, os "dramas" são para mim, o objecto máximo deste universo. É inevitável o mergulho no carrocel de emoções que este género de filme provoca. Dou por mim a antecipar um desenlace, a torcer pelo sucesso de uma personagem ou a enamorar-me pela heroína. Ainda ontem me deparei com a caminhada de dois homens vividos, a quem o tempo se iria esgotar, aos braços de um cancro. O filme alerta os sentidos pela descoberta e realização das coisas que realmente nos fazem felizes. Não foi no entanto a mensagem poética que mais prendeu a minha atenção. Foi a forma simples como a personagem descrente encarava a vida: "Não confies num peido". É incontornável o mérito desta lição. Para além de estimular o olfacto, convida à reflexão. Não nos aceitamos enquanto corpo físico. Passamos grande parte do nosso tempo a tentar esconder os nossos defeitos, a silenciar o nosso organismo, a disfarçar as nossas imperfeições. E tudo com que propósito? Para não nos julgarem mal. E esse julgamento é sobre quem somos ou sobre quem parecemos ser? E ainda queremos ser felizes...

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

1/4 menos interessante

Quais são os factos que nos tornam mais ou menos interessantes enquanto indivíduos? Tenho uma leve inclinação a dizer que damos especial valor a factos que nós próprios gostariamos de experienciar. Existem factos que nos são naturalmente impostos, como é o caso da escola em que estudamos, de acompanhar os pais na emigração ou ter as pernas arqueadas. No outro lado da moeda, temos as experiências que são uma opção nossa, como fazer Erasmus, ver determinado filme de acção ou comprar uns jeans pré-lavados.
Já saltei de paraquedas, dei aulas num orfanato em Moçambique, andei num avião de acrobacia, comi 28 sardinhas seguidas de 7 caldo verdes, corri todo nu em Ponta Delgada...estas são apenas algumas experiências que optei realizar na minha vida. Naturalmente que me orgulho mais de umas do que de outras. Também li o Guerra e Paz de Tolstoy. E sempre me orgulhei de o ter feito...até ontem.
Li o Guerra e Paz em 2004. Demorei mais de 6 meses a ler os três volumes que compõem o livro. Quando cheguei ao fim, recordo-me perfeitamente de pensar "está feito", por que na verdade, o livro nunca me prendeu verdadeiramente.
Há dois dias atrás fui conhecer a biblioteca de uma pessoa. Os meus olhos percorreram as estantes ávidos de curiosidade até que esbarraram no Guerra e Paz. A biblioteca continha a mesma edição que eu tenho, com aquela encadernação inconfundível. A única diferença é que na biblioteca havia nada mais nada menos que 4 volumes em vez dos 3 que eu sempre tive.
Não conseguia acreditar no que estava a ver. A princípio tentei enganar-me a mim próprio e pensar que talvez tivessem feito uma edição diferente dividida em 4 volumes. Mas na verdade, percebi logo que estava feito ao bife. A confirmação deu-se no dia seguinte quando recebo um sms com a última frase do 3º volume. Comparei com o meu livro e era tal e qual. A minha mãe disse-me que é possível que o 4º volume se tenha perdido quando fomos viver para a Póvoa de Varzim (e já lá vão 26 anos), mas que se recorda perfeitamente como o livro termina, com a reunião do amor de Pedro e Natascha.
A lição que tiro desta história é que Tolstoy é na verdade um escritor brilhante. A forma como acaba o 3º volume foi suficientemente boa para iludir-me que o livro tinha terminado. Nem a palavra "Fim" foi necessária.
O facto de me ter escapado o último dos 4 dos volumes que compõem o Guerra e Paz, fará de mim uma pessoa menos interessante? Mas quanto menos interessante? Se o a obra são 4 livros e eu li apenas 3, se calhar passei a ser 1/4 menos interessante no que diz respeito à leitura do livro.
Mas a verdade é que não posso limitar estes danos no que toca ao João enquanto leitor do livro. Estes acontecimentos afectam ainda mais o João, enquanto João. E a própria publicação desta história é por isso um tiro no pé. Serei seguramente motivo de chacota por muitos e bons anos. "O gaijo que leu apenas 3 volumes do Guerra e Paz e achou que tivesse chegado ao fim". Realmente que coisa triste que é...mas também não deixa de ser interessante!!

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Cartas ao leitor

Estimado Leitor,

Decidi escrever-te pois tens sido um problema na minha vida. As tuas expectativas são demasiado elevadas. Não podes exigir de mim absolutamente nada. A frequência com que escrevo apenas a mim me diz respeito. Do mesmo modo que não podes opinar sobre o conteúdo: "Escreve sobre o Amor João". Este blog é meu e não teu. Não contes comigo. Passa bem.

João


Estimado João,

Tu também és o leitor.

Leitor


Estimado Leitor,

A tua carta foi parca em palavras mas atingiu-me no âmago de quem sou. Fizeste-me compreender que tenho escrito apenas para mim enquanto leitor: "Será que o leitor vai gostar? Compreenderão esta piada? Como se escreve esta palavra?". A matriz deste blog não era certamente esta. Queria um espaço para guardar as ideias que me ocorrem, e dei por mim, mais preocupado com a opinião daqueles que me poderão ler. Reneguei a origem e com isso perdi mil e um raios de sol para escrever. Mas agora acordei com as tuas palavras e agradeço-te por isso. É tempo de escrever quem sou. Posso perder todos os que me seguem. Mas pelo menos um leitor continuará fiel e com isso descobrir-se-á a si próprio ao longo do tempo: Eu próprio.

João

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Luzes néon

É incrível como podemos perceber mal as coisas que nos explicam. O mais flagrante é nos pedidos de informação. Ainda há pouco, umas Francesas num Português arranhado, disparam na minha direcção:"Por favor, Avenida da Liberdade". Para não haver dúvidas "hablo in English" para que a compreensão seja facilitada. Elas dizem "Merci" e eu sigo o meu caminho. Eu e os atacadores, os atacadores e eu. Enquanto me agacho e recordo um nó de escuta infalível, olho de soslaio para trás. O que vejo?? As Francesas a ir no sentido oposto ao que eu disse. É de ficar um bocado stressado, mas sabem que mais?? Caguei!! Quero lá saber. Penso sempre de forma positiva: "viram umas uvas chilenas a bom preço naquele mercadinho e foram tratar das exigências do estômago". É que só pode ser isso!
Nas primeiras horas da madrugada de uma dia 31 de Janeiro do segundo milénio, andava eu meio perdido nas freguesias do concelho de Fafe. Procurava uma casa na qual havia uma festa de preparação para o fim de ano. Decido parar o carro e perguntar a dois transeuntes se tinham ideia de tal local: "Ora bem você segue por esta estrada e depois de encontrar o Restaurante do Tone Quim é só virar na rua que desce à esquerda e vai lá dar direitinho". Fiquei perplexo com esta indicação, pois se eu soubesse quem raio era o "Tone Quim", seguramente que não estava à 01h30 a pedir informações. Primeira velocidade metida e aqui vamos nós. Nem 400 metros passados e começo a ver umas luzes néon rosa à imagem do cinematográfico "Cocktail and Dreams". Quando o carro fica em frente às luzes pude finalmente ler "Restaurante Tone Quim".
Realmente, comunicar como deve ser, só mesmo para especialistas.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Folar da Páscoa

Será que existem outros planetas habitados? Estou convencido que sim, pois de contrário seria um desperdício de espaço no espaço. Sinceramente ainda não percebi esta história das palavras homónimas, homófonas e homógrafas. Teria sido muito mais fácil pura e simplesmente chamar outras coisas às coisas. Coisas às coisas. Já caí outra vez... Eu adoraria ter amigos extraterrestres. Confesso que tenho as minhas dúvidas quanto à origem de certas pessoas que conheço, mas de qualquer modo, estava a referir-me a extraterrestres como deve ser. Estão a ver? Eu também não. Seria fantástico ter um vizinho como o Alf. De certeza que se poria alguma ordem na gataria vadia e privada que se passeia pela minha rua. E o despertador?? Existe coisa mais irritante do que acordar todos os dias com a mesma musiquinha?? Se o Chewbacca do Star Wars morasse ao lado, pelo menos podíamos despertar com um dos seus característicos grunhidos. Sábado de manhã: “ET, vamos dar uma volta de bicicleta”. E lá íamos a pedalar em plena atmosfera.“Tu muito sonhas João”. Realmente é verdade que sonho muito. Mas sinceramente, quando olho para o folar da páscoa (3 ovos cozidos com casca enfiados numa regueifa doce) não tenho qualquer dúvida: eles andam aí.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Alfacinhas

“O teu avô fez uma ramada exactamente igual às da Pousa”. Ao ver as fotografias que eu tinha trazido da sua antiga casa de Xinavan (Moçambique), o meu pai contou-me que num dos lados do quintal, o meu avô tinha plantado uma vinha à imagem das que se faziam na sua terra natal.
No ar livre de uma grande cidade é quase impossível sentir o aroma único de uma videira. O diospiro e o rosmaninho também não andam pelo ar. A brisa nada tem de coentros, limão ou pimentos. Nem mesmo a ventania sopra a alperce, louro ou alecrim.
No ar condicionado dos nossos veículos já é possível ter toda essa amálgama sensorial. Graças ao homem moderno, os pinheiros aromáticos e os doseadores de perfume estão na prateleira de qualquer supermercado.
O ar livre e o ar condicionado. O incerto e o seguro. O verdadeiro e o falso. E mais um sem número de duos conhecido, pois para trio famoso só mesmo o de Odemira...
A grandeza de uma cidade não se mede apenas pela sua dimensão. A janela de oportunidades que oferece e a capacidade de surpreender, são dois elementos fundamentais numa cidade. E foi uma janela e uma surpresa que me ilucidaram para o tamanho de Lisboa. Numa fila de trânsito interminável do IC19 dei por mim de janela aberta. A surpresa chegou quando me cheirou a salsa. Atirei os olhos para a berma e siderei em “ponto morto”. Tinha acabado de avistar um língua de terra rectangular que não teria mais de 10 metros de comprimentos e 2 de altura. Mesmo com uma inclinação pouco inferior a 45º, uma sachola atrevida lavrava a terra. Rapidamente identifiquei couves, cebolas e salsa. A minha paralisação apenas foi interrompida por uma buzina pouco afinada de um Opel Kadett. Meti a primeira e continuei viagem de sorriso pendurado. É inacreditável a quantidade de pedras preciosas que perdemos com a peneiração apressada que fazemos das nossas vidas. Garimpeiros sem tempo à procura do “el dorado”. Felizmente ainda há quem cultive nas grandes cidades. Mesmo que a terra não seja fértil, só o facto de nos transportar momentaneamente para o campo, já é uma excelente safra.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Rampa de lançamento

Hoje madruguei para uma viagem de comboio. Recordo a minha infância e as incontáveis vezes que acompanhei a minha mãe com o meu meio bilhete tarifado até à estação de pedras rubras. Quando lá chegávamos era só saltar para dentro de uma carrinha que num instante estacionava no aeroporto.
Sempre tive um fascínio apaixonado pelo aeroporto e tive a possibilidade de conhecer bastante bem o seu modus operandi. Foi necessário no entanto que a idade adulta desse de si, para que me enamorasse por um pequeno recanto do aeroporto: a rampa de lançamento. Esta é a expressão que escolhi para designar o átrio das chegadas, dando particular atenção ao espaço, de onde surgem subitamente os viajantes.
A zona das chegadas nunca está sozinha. Seja a que horas for, encontramos sempre alguém por lá. Mesmo em horas ausentes de tráfego aéreo, podemos lá ouvir o assobio de quem limpa o pavimento ou o deambular de alguém a fazer uma ponte aérea. Adoro quando o aeroporto está um caos. Centenas de pessoas à espera, dezenas de aviões a aterrar. Confusão total para recolher as malas e depois aquela teatrealidade a passar na alfândega. Caminhar o mais naturalmente possível, não vá o senhor agente adivinhar que trazemos mais de 30 pares de hawaianas na mala. É tempo de finalmente respirar à vontade. As portas automáticas fazem a honra de abrir e um novo mundo parece desaflorar. Em tempos de tecnologia peço ao leitor que prima o “pause” para nos concentrarmos nesta imagem. Ali está o parente desejado. Tem quase que em ponto de rebuçado, toda uma família a aguardar. É ver as crianças encavalitadas, penduradas no varão ou entretidas com uma amizade de ocasião. Ouvimos até os graúdos em traje de cerimónia, a dizer aos infantes: “aquele é que é o teu pai”, “pergunta-lhe o que te trouxe”, “corre para ela”. Rio-me sempre com estes abraços e beijos desajeitados.
Também por lá andam algumas cores de pele que não são a maioria naquele país. Têm uns trajes um pouco inadaptados e trazem sempre as maiores malas. O seu semblante mistura uma boa dose de medo, expectativas e saudade. É um cocktail de emoções que se engole em seco. Encontram por vezes família chegada, mas primos, amigos ou conhecidos, é o mais frequente. Por aqui há abraços e beijos muitos apertados, e aqui, choro invariavelmente.
Na nossa imagem ainda podemos presenciar o casamento entre passageiros e cartazes. Carne e papel numa cerimónia civil. Refiro-me às pessoas que se dirigem aos cartazes empunhados por motoristas, nos quais se pode ler um nome próprio, o nome de uma empresa ou o nome de um hotel. Também lá estão os habituées destas andanças das viagens, que rapidamente se evaporam num taxi ou no carro de um parente.
Bom, penso que podemos ficar por aqui. Mas...esperem...acabo de distinguir mais um grupo. É verdade, lá estão eles. Como me pude esquecer. Passam imensamente despercebidos nesta azáfama aeroportuária. Ali à esquerda, estão a ver? Lá está um exemplar. Uma pessoa sozinha à espera que a venham buscar. E quem a vai buscar na grande maioria das vezes não é inocente. Existem muitos atrasos provocados. “Quando, chegar, cheguei!” O mesmo verbo, dois tempos diferentes...a merda do costume diriam muitos.
Já fui todos estes passageiros. O familiar retornado, a pigmentação curiosa, o noivo do cartaz, o experiente nestas lides e o que desespera por não se lembrarem de si. A rampa de lançamento permite saborear todas estas personagens, todas estas emoções. Talvez não tivesse essa capacidade em pequeno, mas é sem dúvida daqui, que vem o meu fascínio pela aeronáutica.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A cova do dente

Não sei se terei algum animal favorito, mas tudo o que se assemelhe com o Simba, faz sem qualquer dúvida o meu género. Os felinos são realmente uns animais curiosos, e um dos aspectos que mais aprecio é a sua incrível capacidade de rasgar a carne das suas presas. Uma pessoa com uma coxa de frango na mão, é uma imagem já bastante estabelecida, de como também nós conseguimos demonstrar o vigor com que podemos comer. Questiono-me no entanto, o que aconteceria se substituíssemos este frango assado com picante, por uma bela manga vermelha. Não tenho qualquer dúvida que conseguiríamos arrancar um belo naco de fruta, mas o resultado seria catastrófico. Existe sensação pior do que ter um fio de manga ou uma lasca de bacalhau, entalada entre dois dentes? Então se for em dois molares, o fado ainda mais negro se torna.
Se as escovas de dentes tivessem orelhas, de certeza que estavam sempre ruborizadas como um bocado de carvão em chamas, pois é quando estas situações acontecem, que mais saudades temos da nossa esfregona dentária. Saudades da nossa ou de outra pessoa qualquer, pois quando a desgraça atinge, a assepsia fica para segundo plano. Alguém que nos acuda por favor. A língua coitada, é vê-la numa luta quase que desumana para tentar salvar-nos desta situação. É o dia inteiro para trás e para a frente numa corrida contra o tempo. Existem inúmeras estratégias para arrancar estas porções de comida, mas sobre isso não me vou debruçar, pois criaria um post interminável. Cabe ao leitor avaliar aquilo que faz e rir-se com isso.O mais incrível é o tamanhão que esses bocados de comida podem ter. Ainda hoje eu próprio me surpreendi com os meus dentes. Mas até estou contente com isso, pois daqui a pouco vou para Paris numa Low-Cost e assim já levo na cova do dente uma meia dose de “bacalhau à gomes sá” que me sobrou do almoço.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A linguagem do limão e do vinho

O tempero de um bife não é consensual. Não me estou a referir ao sal, alho, louro ou pimenta. O grande problema está na luta férrea entre o limão e o vinho. Em ambos os casos é necessária uma atenta diligência. A comunicação nada mais é que uma dose de limão e um trago de vinho.
A linguagem do limão é cáustica e directa. Para além de permitir poupar tempo, é muito empreendedora. Há quem diga até que é mais honesta. É extremamente utilizada pelas camadas mais jovens, que curiosamente pouco conhecem sobre o real alcance da mesma. No meu jogo de imagens, diria que, antes de dominarmos a quantidade de limão, devemos começar por comprar carne do cachaço, pois o lombo está extremamente caro, e seria uma pena estraga-lo com demasiado palavreado citrino.
A linguagem do vinho é nebulosa e indirecta. Aparentemente não leva a lado nenhum, mas pode conduzir a grandes feitos. Também há quem diga que seja mais verdadeira. As pessoas mais treinadas, utilizam-na com frequência, pois vivem na ânsia que os outros maduros, a compreendam. Penso que antes de embebedarmos os nossos interlocutores com a linguagem do vinho, devemos colocar-nos no seu papel, pois na maioria das vezes, começam a pensar como um pessoa de olhos em bico: "arroz outra vez??".
A batalha da linguagem irá sempre cruzar-se com o nosso caminho. Sinto um pouco de remorsos é de ter colocado o nosso bife no meio desta encruzilhada. Mais um inocente condenado às mãos de um escritor de ocasião, pensará o leitor.
Mas fique o leitor sabendo, que este escritor de tijela e meia, carrega em si, o génio culinário da D. Délia. O nosso suculento bife será mergulhado numa sangria. O limão como estará entretido a conversar com outras frutas irá finalmente relaxar. O vinho lembrar-se-á que em tempos foi um cacho de uvas, e irá levar-se a si próprio mais a sério. São servidos?

Jogo das covinhas

Não sei se hoje em dia existem berlindes. Presumo que berlindes ainda haja, não sei é se ainda os conseguimos encontrar no seu ambiente natural, que são os recreios escolares. Eu ainda conservo um caixa amarela de Nesquik cheia de berlindes. Convém dizer que na minha casa as caixas de Nesquik sempre foram bem aproveitadas, como por exemplo para fazer halteres, que fariam transpirar de inveja, os administradores de qualquer ginásio mais fashion. Fiquemos por aqui pois o texto sobre os ginásios a seu tempo chegará. Concentremos agora as atenções nas bolinhas vítreas.
Leiteiras, abafas, planetas, brilhantes, comuns e aranhas, todos juntos numa amena cavaqueira. De todos os jogos possíveis, existe um em particular que me ensinou muito. O jogo das “três covinhas”. Antes de se poder começar a tentar fisgar os adversários, é necessário cair um vez em cada covinha.
Nesta vida de grandes emoções, batemos algumas vezes com a cabeça no fundo da piscina. Penso que nunca temos bem noção dos nossos mergulhos. Vivemos a ilusão das águas do Mar Morto e que é impossível chegar lá a baixo. Mas o que é facto é que acontece. Lágrimas soltam-se de todos os poros da nossa pele. A tristeza silencia a gargalhada e a derrota toma o comando das operações. Sentimos o nosso Norte a escorregar pelos dedos. Ficamos perdidos minha gente.
A necessidade de tais capítulos, explica-se nos berlindes. Apenas depois das covinhas feitas, é que podemos realmente começar a brincar. Mas são estes desertos de ideias que dizem quem realmente somos. E depois de nos conhecermos...enfim, não consigo parar de rir só de o imaginar.
A vida na sua essência, nada mais é, que um comum despertar. Mais cedo ou mais tarde, todos nós, nos levantamos. Os berlindes hoje encontram-se no “Jardim Nostálgico”, mas podemos sempre lembrarmo-nos do que eles me diziam.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

As gajas boas

As gajas boas estão a desaparecer. A palavra tem mesmo de ser "boas". Não há outra forma para as definir. Palavras como lindas, bonitas, elegantes ou jeitosas, morrem pela sua própria limitação, e o leitor poderia distanciar-se de quem pretendo retratar. As gajas boas da minha vida andavam pelo ciclo e pelo liceu. O verbo mais correcto talvez seja "levitar". Sim, muito melhor. Levitavam pelo ciclo e pelo liceu. Nós os mortais é que andávamos. As gajas boas usavam calções de licra pretos com uma banda vertical colorida na parte exterior da coxa. Calções esses, que deixaram de ser comercializados, pois provou-se serem responsáveis por inúmeros torcicólogos em rapazes. As gajas boas, não podiam sorrir para os mortais. Cada qual no seu lugar como manda a regra. Mas todas as regras necessitam de excepção, e por vezes as gajas boas soltavam um sorriso. Um sorriso à solta é como um cão quando sai à rua. Estou certo que o leitor compreende esta minha analogia, mas eu estaria muito mais seguro se um dia conhecessem o Tolstoy, que mais que um cão, é uma verdadeira gargalhada itinerante. Ficavam pois os rapazes cativos, e a felicidade rebentava com as fortes costuras (o que vale é que as mães tem sempre à mão a agulha e o dedal).
O problema é que as gajas boas hoje em dia já não são boas e cada vez que vou à Póvoa tenho sempre a infelicidade de me cruzar com algumas. Ainda se chamam gajas boas, é certo. O tempo deixa estas conotações impossíveis de esquecer. Um pouco à imagem do cotão, que volta sempre ao local de onde o afugentaram. As gajas boas perderam o seu encanto e as ancas parecem ter ganho uma identidade nova. As madeixas brancas já são demasiado evidentes e as rugas impossíveis de disfarçar. Vejo-as cansadas e a expirar um ar demasiado viciado.Não consigo deixar de ficar triste com o desaparecimento das minhas gajas boas. São parte integrante da minha vida e agora tenho de assistir passivamente ao seu desaparecimento. É demasiado doloroso. Agora que penso... também eu estou a desaparecer! As gajas boas só desaparecem para eu saber que também eu estou a desaparecer. Caramba...desde o dia 27 de Dezembro de 1979 pelas 19h que me encontro em risco de extinção.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

A importância da ferramenta

Hoje vou correr. Não acordei à hora devida, mas o compromisso com terceiros (porque os segundos foram há muito esquecidos pelas seguradoras), obriga-me a ir sacudir o corpo. De preferência a um ritmo mais elevado que o do merengue. Não que as danças latinas não tenham o seu suor, mas para isso são precisos uns bons sapatos de verniz, e isso é coisa que não tenho. As minhas sapatilhas estão definitivamente afastadas do "dança comigo". Estão condenadas a servir à mesa em ambientes de terra batida, asfalto ou cascalho. É a sua sina e não vale sequer a pena, a gente se indignar com isso. A semana passada debaixo de uma chuva torrencial joguei futebol. Um derby: portugueses contra brasileiros. Adivinhei de imediato que estavamos condenados à derrota. Não por causa do enorme talento carioca ou paulista, mas devido a um facto ainda mais importante: um dos brasileiros iria jogar descalço. De imediato me lembrei de uma conversa que tive com um amigo meu sobre jogging:"se não tivesse estas sapatilhas não viria correr". De facto as sapatilhas parecem transformar o corredor no Carlos Lopes (o de Los Angeles é claro pois o de agora deve estar relacionado com o milho transgénico). Depois de calçadas (com meias para potenciar o efeito), as sapatilhas dinamitam por completo a preguiça, surgindo um jorro de vontade em seu lugar. A importância da ferramenta é algo de assombroso e hilariante. A nossa dependência perante objectos assume contornos quase tão jocosos como as piadas que se faziam sobre o Bocage.
Vou tentar inverter esta corrente e por isso não vou correr. Vou a casa buscar a camisa de lantejoulas. As minhas sapatilhas hão-de servir para o merengue...

domingo, 6 de janeiro de 2008

A questão das mãos

Recordo uma programa sobre o Carlos Paredes. O jornalista José Carlos Vasconcelos referia que a nossa guitarra de Coimbra não sabia o que fazer às mãos. Apenas quando se sentava, com o cordofone em forma de coração no colo, é que as suas mãos encontravam algum sossego. As mãos são realmente um problema. Talvez por isso eu sempre tenha tido o hábito dos bolsos. Por vezes até encontro uma moeda que sempre entretém os dedos. Principalmente o anelar esquerdo, pois é de todos, o mais nervoso. Já se viu mais algum dedo a reclamar quase uma vida inteira por uma porção de ouro circular? Os telemóveis vieram agravar a questão das mãos. Se uma mão alheia pega num telemóvel para atender uma chamada, as nossas mãos começam com suores frios (um pequeno desvio neste caminho pois é imperetrível dizer que nunca percebi esta história dos suores "frios", tendo em conta a nossa temperatura corporal de 37ºC....). Voltando às protagonistas deste texto, temos então as nossas mãos numa impaciência quase a roçar o limiar da audição. Mil e um movimentos acontecem: vão aos bolsos ver se as chaves de casa lá estão, penteiam uma madeixa de cabelo, elevam o copo para mais um gole, afrouxam o nó da gravata...mas o nervosismo não atenua. Por fim caem novamente em tentação. O investimento na clinica de reabilitação todo por água a baixo. Num ápice atiram-se ao telemóvel como uma criança perante um frasco de biscoitos de laranja. O teclado é desbloqueado num milésimo de segundo e a adrenalina volta a circular pelos vasos sanguíneos. Mesmo sem mensagens, mesmo sem chamadas não atendidas. Um pouco de paz finalmente.

sábado, 5 de janeiro de 2008

Manobras desalinhadas

O nosso corpo é um traidor. Assim que viramos costas, somos atingidos por esta evidência. É inacreditável o número de mazelas que acumulamos sem ter sequer uma ideia da sua origem. O pensamento não está adaptado com o corpo que o conduz. Por isso vamos contra portas, tropeçamos em nós mesmos e as próprias unhas, parecem lanças de automutilação. Existem no entanto acidentes de percurso, que podem não marcar o nosso corpo, mas que marcam mais a fundo ainda, o nosso comportamento: a dança do garfo e faca. Um segura o bife enquanto a outra executa linhas de corte retilíneas. Por artes quase mágicas, o corpo toma conta da ocorrência e surge um movimento mais brusco. Resultado: roupa manchada pelo molho de pimenta rosa. A camisa verde alface onde pasta o cavalinho bordeaux de uma marca qualquer, fica deste modo sarampintada pela dita guarnição. Os corpos alheios soltam um sorriso, mas a situação é de todo embaraçosa. Uma noite condenada disfarçada com um tira-nódoas disponível ou com uma água barrenta de uma torneira que já viu melhores dias.
Por vezes me pergunto qual o significado destes acontecimentos. Parecem armadilhas do Diabo (escrito com letra maiúscula porque o respeitinho é muito bonito). Manobras desalinhadas que nos recordam que o corpo é mais importante do que muitas vezes julgamos. Até ele tem vida própria. Mas no fundo, isto é demasiado evidente, pois até o pensamento tem direito a férias. E pela leitura deste texto facilmente se compreende que o pensamento deveria ter ido de férias antes de ter comprado tal camisa, pois a pressão do bom gosto social, requere concentração. Mas não culpemos de imediato este pensamento. Soube agora que a camisa tinha-lhe sido oferecida pela avó. E no que toca a isso, a moda não tem idades...

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

A razão do título

Nunca me deitei num colchão de água. Presumo no entanto que seja um local confortável para qualquer corpo que dele se sirva. Ao mesmo tempo, não me parece que seja fácil de lá sair, como uma areia movediça que nos prende à preguiça do corpo. O bem estar e a prisão, como se ambos pudessem conviver em perfeita harmonia. O colchão de água é como um molde dentário. A minha impressão digital neste universo http:// em que hoje em dia vivemos.