domingo, 20 de julho de 2014

Ópera cómica em 3 actos

A maior vantagem de uma cidade pequena é sem dúvida alguma a sua própria dimensão.Tudo está próximo independentemente de quão na periferia da cidade possamos estar. O hospital, o mercado, o banco, a antiga professora de química, aquela jeitosa por quem suspirávamos na catequese... !  Após o jantar de ontem decidi fazer uma caminhada pela cidade. Verão e Passeio, mesmo numa cidade onde a fria nortada é a autoridade em funções, pedem calções e sapatilhas. Optei por fazer um pequeno desvio na rota habitual para ver a remodelação do Cine-Teatro Garrett, que após inúmeros anos encerrado, abriu novamente as portas aos aplausos do público. Assim que me encontrei diante do edifício uma cara amiga deu-me conta, que dali a uma hora, se realizaria mais um concerto do Festival de Música. Comprei o bilhete de imediato e nem me dei ao trabalho de ver o programa para aquela noite. Vários anos a assistir a tal ciclo de concertos eram a garantia suficiente que teria uma bela noite de música clássica.

Ainda tinha imenso tempo até ao concerto e continuei por isso o meu passeio. Chegado a uma grande praça junto à praia encontrei uma multidão de gente. Centenas de pessoas com trajes de ginásio seguiam os ágeis movimentos de um rapaz que se encontrava em cima de um palco. A coreografia e a música não deixavam margem para dúvidas:  zumba. Assisti divertido ao empenho e alegria de toda aquela gente, mas a minha opinião sobre a zumba permaneceu igual: sem caneca não é zumba. Após uma breve pausa no Café de sempre, regressei ao Cine-Teatro. Na subida vertiginosa para tentar assegurar um lugar na primeira fila do primeiro balcão, apercebi-me de 3 coisas: muitas gravatas, ex-ministros, demasiados degraus. Estes últimos explicam-se pelo facto de já não existir o antigo primeiro balcão. As gravatas e o ex-ministros talvez se expliquem com o que passado alguns minutos se anunciou: “La Spinalba ovvero Il vecchio matto – Ópera cómica em 3 actos”.

O público estava todo devidamente aperaltado para a ópera que iria principiar no Garrett. Calções e sapatilhas eram mais apropriados para a zumba que se exercitava na praça. Imagino que a professora de química e a jeitosa da catequese, sentadas duas filas à minha frente, pensariam o mesmo. O sentimento de vergonha desapareceu assim que o cravo e o violoncelo começaram a afinar os restantes instrumentos. Não sei se terão sido as minhas pernas nuas ou as sapatilhas, mas facto é, que apesar de existirem inúmeras pessoas conhecidas, durante o intervalo, não tive qualquer encontro imediato. A ópera terminou sob uma chuva de aplausos. Inesperadamente, na rua também chovia...não esperei para ver como fariam com as saias travadas...

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Trovoada

As torradas da Biblioteca da Póvoa de Varzim em bom rigor não poderão ser consideradas como verdadeiras torradas. Sim senhor são compostas exclusivamente por pão, confirmo a utilização da torradeira e garanto o clássico sabor a manteiga. O problema é temporal: o pão utilizado nessas torradas, é o do próprio dia. E este facto tem obviamente um impacto determinante no resultado final. Conhaque é conhaque, champanhe é champanhe. As melhores rabanadas são as do dia seguinte à fritura e o peixe para a grelha só mesmo o apanhado naquele dia. Muitos mais exemplos poderia apresentar que validam a importância da questão temporal. Fica por isso claro que não se trata de uma embirração da minha parte para com as supostas torradas da Biblioteca da Póvoa de Varzim. Os idos tempos de estudante há muito já lá vão.  E boa verdade não me recordo da última vez que terei entrado em tal espaço municipal. Apesar de lembrar as torradas do modo que descrevi, admito que entretanto possam ter havido melhorias a nível da cafetaria. Nem que mais não seja, para podermos chamar as coisas pelos nomes correctos.

A minha semana laboral tem lugar na Biblioteca de Oeiras onde não existe qualquer cafetaria. Duas máquinas de snacks e uma máquina de café, asseguram as necessidades humanas fundamentais a quem lá anda. Estão igualmente disponíveis duas casas de banho para a concretização de outras necessidades básicas. Curiosamente, e abro aqui um parênteses,  as máquinas de alimentação, encontram-se localizadas a menos de quatro metros das portas dos WC. A justificação para tal proximidade parece-me óbvia: uma coisa pode levar à outra ( independentemente de qual a primeira). O  que aqui efectivamente me interessa relatar diz respeito a outra necessidade fundamental: o sono. A satisfação desta necessidade básica é a verdadeira missão de qualquer biblioteca. A Biblioteca de Oeiras, neste capítulo, é um modelo de excelência a copiar. Como se já não bastasse o silêncio aterrador da pesada  literatura e os gélidos olhares das bibliotecárias perante o mínimo espirro, a Biblioteca de Oeiras, para além de mesas e cadeiras, disponibiliza pufes para as pessoas estirarem. Mais uma vez, também a localização dos pufes, foi estrategicamente pensada: nos tranquilos corredores que existem entre as diversas estantes de livros. Os pufes são por isso altamente procurados por quem necessita de satisfazer uma das suas necessidades básicas.

Como não tenho muitas ideias quando estou a dormir não vejo qualquer beneífio na utilização dos pufes. Não só não utilizo os pufes, como também levo as minhas refeições para a biblioteca. As ideias que tenho, umas mais parvas que outras, apesar de serem imensas, não preenchem naturalmente, a totalidade da minha atenção. Já vou reconhecendo por isso algumas das caras que frequentam a Biblioteca. Há um rapaz que todos os dias se estende no mesmo pufe. A mesa em que me costumo sentar, é próxima o suficiente do pufe no qual o rapaz invariavelmente se encontra, de modo que já conheço alguns dos seus movimentos. Para além de um computador portátil no colo e de meia dúzia de cardernos pelo chão, pouco mais há a apontar. Não pude foi igualmente deixar de reparar, que o rapaz do pufe, é um adepto confesso das máquinas de snacks e café.  

Uma desgraça poderá estar por isso prestes a acontecer. Na verdade, prestes a fazer-se ouvir. A associação, da malemolência própria do pufe, com a qualidade dos géneros alimentares daquelas máquinas, certamente resultará, num muito pouco mudo, processo digestivo. A vergonha desta sonoridade poderá justificar uma descarada mentira. Afinal de contas, qualquer pessoa que já tenha experimentado um pufe, tem noção da música que este sugere a cada movimento nosso. Seria por isso muito fácil, sugerir que a trovoada intestinal, não fosse mais do que um acorde musical do pufe. O problema é que eu estarei por perto... e se não deixo passar as supostas torradas, certamente que não será necessário um relâmpago para comprovar o fenómeno da trovoada...

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Alma de esquerda a circular pela direita

Um dia, algures no Sul do Laos, aluguei uma mota. Percebi que andava muito bem para a frente e para trás, mas que me era impossível andar de um lado para o outro. Na verdade até era possível, pois bastava-me empregar a técnica que utilizava quando desejava andar para trás: parar a mota, sair da mota, virar a mota para trás, entrar na mota, conduzir para a frente. Motorizadamente falando, não me consigo inclinar nem para a direita nem para a esquerda, o que na prática significa, que não sei curvar. Rapidamente compreendi que a minha técnica de fazer as curvas dificilmente me faria chegar longe. A resolução para esta situação surgiu rapidamente: oito minutos após o aluguer da mota, aluguei um condutor para a mota. Os automovéis, ao contrário das motas, não obrigam a qualquer inclinação por parte do condutor. Uma vez que este facto não é do conhecimento geral  e que este blog tem poucos seguidores, poderemos continuar alegremente a visualizar, não raras as vezes, aquando de uma subida de um automóvel, o respectivo condutor inclinado para a frente.

Apesar das enormes tolices que reconheço que fiz enquanto recém encartado, creio que nunca me terei inclinado para a frente. Os tempos de grumete ao volante já lá vão, e apesar  de poder estar errado, creio que hoje em dia, sou um condutor bastante fiável. Esta era a minha convicção até há semana passada. Apesar de não ter acidentes de viação a registar, sinto-me desde então, um pior condutor. Admito que algo de inexplicável possa ter ocorrido dentro de mim, mas no imediato, tenho de atribuir as culpas ao Renault Twingo. Eu e este carro somos amantes ocasionais há muito tempo, mas agora que aumentamos a frequência dos encontros, as coisas parecem começar a azedar. Até há semana passada, os nossos encontros foram sempre marcados pela presença da proprietária do carro. Tal como dois namorados na presença da mãe, os encontros até então, foram bastante moderados em termos de manobras. O problema é que agora o Renault Twingo exige demasiado de mim. O tipo de carro a que estava habituado fazia tudo por mim: regulava o ar condicionado, accionava o limpa pára-brisas, acendias os faróis... . Eu apenas tinha que desfrutar da companhia do automóvel. Se de uma amante se tratasse, era a mulher-a-dias perfeita. O Renault Twingo é uma verdadeira dondoca.


O que mais me fere é estar agora limitado a circular pelo lado direito da faixa de rodagem. Alma de esquerda a circular pela direita. Não existe castigo maior para um condutor. Creio que não conseguirei suportar esta situação por muito mais tempo. Em algum momento terei de terminar esta relação. Era suposto uma amante fazer-me sentir bem, mas sinto-me cada vez pior. Mas talvez seja melhor aguentar, pois o autocarro da rua é a serventia da casa... . Regulo o ar condicionado, acciono o limpa pára-brisas, acendo os faróis... qualquer dia estou a inclinar-me para a frente...

sábado, 5 de julho de 2014

Ainda que o carvão acabe



A minha empresa está prestes a entrar no seu quinto dia de existência. Estes quatro primeiros dias foram muito intensos, e por isso, nada melhor que o fim-de-semana para recuperar as energias.  Na verdade, apesar da sua precocidade, a empresa já começa a mostrar alguns sinais de desgaste. É que não é muito fácil ser uma empresa. Felizmente que o dicionário nos oferece alternativas linguísticas à palavra empresa. O cometimento ousado Sou EU. Acumulo por isso os cargos de Presidente, Director Financeiro, Director de Marketing, Director de Vendas e ainda, de Trabalhador. Numa lógica Lusa, parece-me que a empresa está bastante equilibrada no que diz respeito à proporção de cargos directivos. Até ao momento estou bastante satisfeito com a performance de todos os departamentos, mas começo a sentir, que mais dia menos dia, precisarei de um Director de Recursos Humanos. Director, pelo que está descrito em cima é algo que naturalmente aprecio. Humanos, pela falta comprovada de Marcianos, continuam a ser os meus seres vivos favoritos. Agora, Recursos, detesto.

Em termos da sua origem, não há dúvida que somos um recurso da biosfera. Ainda que o carvão acabe, poderemos assim, quem sabe um dia, continuar a nossa existência, a olhar para uma grelha de sardinhas. Mas numa perspectiva obviamente diferente: de baixo para cima. Será isto aquilo de apelidam de vida eterna? Humm, talvez seja melhor não ir por aí… . A taxa de natalidade actual coloca também algumas interrogações sobre se nos poderemos efectivamente considerar como recursos renováveis. Pelo caminho há sempre algumas recauchutagens que podem ser feitas (zumba, silicone, Professor Karamba...). Umas são mais impactantes que outras, mas em termos de renovação propriamente dita, acho difícil. E depois há a própria questão de gestão inerente ao recurso. Como é que funciona? Da mesma forma como o chefe do meu cunhado que lhe dá instruções para ir ver o que se passa com a torre 12 do parque eólico X, o mesmo se passaria se fosse um Recurso Humano avariado? Na verdade até pode ser que as coisas se passem mesmo assim, e eu terei por isso demorado 34 anos a perceber o significado da expressão, “tens um parafuso a menos”.

Não é de estranhar que o meu cometimento ousado esteja um pouco relutante na contratação de um Director de Recursos Humanos. A empresa é demasiado humanista para permitir que os seus colaboradores sejam geridos como um outro qualquer recurso. Se não houver pinhas ou cavacos disponíveis, toca a meter acendalhas e carvão? As coisas não podem ser feitas assim porque as sardinhas ficam com o cheiro da combustão. A electricidade foi-se abaixo, o cilindro só aguentará um duche, e por isso só um é que se lava? A minha mãe em pequenos dava-nos banho aos três e ainda hoje em dia, tomo muitos duches a dois (mas não com os mesmos). O ouro está pelos olhos da cara e por isso esquece lá as alianças? Aonde é que já se viu, andar depois de casados com os dedos a nu?!

Os Humanos são de tal forma únicos que dificilmente algum dia se conseguirão fazer versões melhoradas com qualidade suficientemente decente, que valha a pena abrir os cordões à bolsa e trazer um para casa. O problema está é na forma de os gerir. Eu na verdade, a iniciar o quinto dia da empresa Sou Eu, já estou efectivamente por tudo e preciso mesmo de ter alguém para administrar os Humanos. Mas quem é que poderá ser? Olha que se lixe, afinal de contas são só Humanos: 

Comunicado: Orgãos Sociais para o próximo milénio do cometimento ousado Sou Eu
João Ferreira – Presidente, Director Financeiro, Director de Marketing, Director de Vendas, Trabalhador e Director de Recursos Humanos.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Santa Luzia

A despedida de solteiro de um dos meus grandes amigos incluiu uma peregrinação ao Santuário de Santa Luzia em Viana do Castelo. O objectivo não foi uma tentativa de expiação de eventuais pecados cometidos, mas apenas e só, uma pausa no programa habitual das nossas despedidas de solteiro: um grelhador, peças de carne de porco, bebidas várias. A caminhada não foi muito longa uma vez que a casa alugada para o efeito, se situava numa freguesia nas proximidades da cidade. Para ser mais exacto, a peregrinação constituiu-se pelos poucos metros que distava o grelhador do carro que nos conduziu monte acima e pelos degraus que davam acesso ao Santuário, junto do quais, o carro ficou aparcado. Admito que não seja uma peregrinação da qual me possa orgulhar muito, mas ao menos, ainda cá estou para escrever esta introdução. Não sei o que se poderia ter passado no meu fígado se naquela tarde de sábado, ao invés de irmos ao santuário, tivéssemos continuado a comer carne de porco. Se fosse frango ainda vá que não vá, mas porco grelhado, é cirrose certa.

Santa Luzia encontrou-me em ébria convalescença, e talvez por isso, aquilo que mais me impressionou, não foi a solenidade inerente ao culto e à fé, mas sim, a vista que se consegue do zimbório da basílica. Olhei principalmente para Sul e tenho a certeza que consegui identificar outro Santo: Bartolomeu do Mar. Aquele que me ensinou a nadar na sua praia. Os mais crentes afirmam até, que foi ele que me salvou. No mínimo, não posso ignorar, que as graves alergias que sofria na meninice desapareçam poucos dias após o banho santo, o galo preto e as três passagens por debaixo do andor de São Bartolomeu do Mar. Mas de uma coisa tenho a certeza absoluta: se não fossem os Verões intermináveis a praticar nas águas daquela praia, nunca me teria safado, quando um dia, uma sorrateira corrente, me tentou levar com ela, por entre um solitário litoral dos arredores de Nha Trang no Vietname. No topo da basílica de Santa Luzia recordei ambos os areais. O areal da confiança que preenchia o menino ao engolir as primeiras águas salgadas sob o olhar atento da família e o areal do medo, que inundava o homem ao debater-se contra a forte correnteza sob um silêncio profundo de solitude.

Ontem subi a um sétimo andar. Depois de um terno abraço, conheci um pequeno templo que até então ignorava. Depois de inúmeros dias passados naquele sétimo andar, finalmente me apercebo da existência daquele acolhedor espaço. Não é no entanto de estranhar, pois o que lá tinha ido fazer nas vezes anteriores, foi tudo menos andar a conhecer a casa. Muito poderia dizer sobre isso, mas fico-me pelo malabarismo, pois afinal de contas, foi lá que percebi que poderia ter feito carreira como malabarista. Eu e todos os habitantes que comigo partilharam aquele sétimo andar. E só quem tentou um dia fazer malabarismo percebe que o segredo é tratar todas as bolas de igual forma. Mesmo que uma pareça presa à mão e a outra vagabunde pelo ar.

Ambos os areais são essências à nossa existência. Podemos gostar de olhar mais para um, tal como eu o fiz no topo da basílica. Não podemos é ignorar o outro areal, porque na vida, tal como no malabarismo, o segredo está no movimento continuo. Em algum momento iremos necessariamente tocar todos os diferentes areais. E no curto espaço de tempo que um destes areais se encontre na nossa mão, teremos de tirar o máximo partido desse momento, antes de o ver elevar-se novamente no ar.

Aquele sétimo andar é torneado a enormes janelas. A vista é quase tão bonita como a do zimbório do santuário em Viana do Castelo. E também lá vive uma Luzia. Santa não sei, Wittmann, de certeza. Não existe peregrinação melhor do que a ida àquele sétimo andar. A seguir a esta só mesmo todas as outras romarias tradicionais...desde que antecedidas de peças de carne de porco...para lamento do meu fígado..