quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Cores primárias

Só a tua lente para me capturar assim. Sempre me vi mais monocromático. Entre o xaile negro do fado e o branco caiado do Alentejo. No fumo que exala de um cigarro e na nostalgia de uma lágrima derramada. Na geada que cobre os campos e no último suspiro de Outono. Creio que é algures por aqui que me encontro. Ver-me pelos teus olhos é para mim uma surpresa. Como se me visse pela primeira vez. Ao princípio tenho dificuldade em manter os olhos abertos. Tanta cor. Tanto entusiasmo. Tanta coisa por explicar. Eu que sempre entendi o mundo a dois tons. Maior ou menor. Vontade ou apatia. Coragem ou medo. Mas ao mesmo tempo o mundo pinta-se a três cores: azul, amarelo e vermelho. Chamam-lhes cores primárias. E é na paleta de cada um que também nos podemos encontrar. Como um farol num dia de nevoeiro. Uma pista, um rumo, um sinal. E já não estamos mais perdidos. E o dia já não é mais cinzento. E de noite vemos as estrelas. E em ti.... e em ti também me encontro.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Jovem procura cavalheiro

No meio das comemorações (ou lamentações) dos já 6 anos a viver em Lisboa, recebi o seguinte SMS : "só tenho um cachecol de quando o porto ganhou a taça uefa contra o betis de sevilha". O que esta mensagem tem de verdadeiramente especial, foi o facto de ter sido enviada por alguém que vive em Lisboa. A minha vida na capital do império, tem sido pautada pelo encontro com pessoas fascinantes. Assim que a minha lancha poveira atracou no cais, tinha à espera, grande parte da família, vizinhos e amigos do tempo universitário. Fiz rapidamente amizade com colegas do trabalho e com outras pessoas que fui conhecendo. Todas estas pessoas partilham de uma coisa: não percebem nada de futebol. Vocabulário como "toque de letra", "roleta marselhesa" ou "trivela" não existem no léxico das minhas amizades alfacinhas. Já para não falar de expressões mais triviais como "obriga a jogar mal", "brinca na areia" ou "chuveirinho".

Ontem fui à casa do meu amigo Bruno e tive esta conversa.
Sr. Nogueira - "Sabes João, o José Mota foi despedido do Leixões"
João - "É mais uma chicotada psicológica"
Sr. Nogueira - "Entrou o Castro Santos. O espanhol."
João - "Esse não treinou o Braga?"
Sr. Nogueira - "Exacto"
João - "Era o antes do Jesualdo?"
Sr. Nogueira - "Sim, mas não sei exactamente quando."
Bruno - "Tu de quando a quando estiveste na Universidade"
João - "1998 a 2002"
Bruno - "Foi nessa altura porque o restaurante debaixo da tua casa tinha lá os posters do Braga"
João: - "Não era Fernando Castro Santos?"
Bruno - "É esse mesmo"

Não houve uma única vez ao longo destes anos todos que tivesse o prazer de assistir a uma partida de futebol acompanhado pelas pessoas que fazem a minha vida em Lisboa. Mesmo os jogos que vi na companhia dos meus irmãos não contam, por que se nos jogos importantes da selecção estão a vibrar, já nos outros jogos, estão com um olho na televisão e outro no cigano (velocidade do vento, comida que vem da cozinha, revista de jogos da playstation...). Tenho por isso que arranjar em Lisboa uma companhia para ver os jogos. E no caso do futebol terei de limitar a escolha ao sexo masculino. Conheço raparigas que sabem imenso futebol, mas não conheço nenhuma que tenha feito as colecções das cadernetas. Por isso é quase impossível encontrar uma rapariga que saiba quem é o Pierre Littbarsky, o Burruchaga ou o Makanaky. Decidi por isso por um anúncio num jornal na parte dos classificados: "Jovem procura cavalheiro para visionar jogos de futebol em conjunto. Máxima descrição".
Se isto não funcionar posso sempre fazer a técnica do Jamaica... (piada privada que não interessa a todos os leitores, ficando a promessa de utilizar mais piadas privadas para que todos se sintam especiais)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Um dia em forma de horóscopo

Enquanto as batatas terminavam e os grelos eram salteados tenho a seguinte conversa:

“Pode ser que a entrevista seja já esta semana”
“O teu horóscopo de hoje fala disso”
“Ai é? E então?”
“Diz que vai haver mudanças em termos profissionais”
“E no amor, como é que está?”
“Só lá para dia 13”

Um jornal de hoje reza assim “Não comece nenhum tipo de relacionamento neste período. Espere até ao dia 13. Carreira em alta com algumas mudanças positivas previstas”. Como eu nunca soube o que a palavra carreira realmente significa, fico-me apenas pela primeira parte do horóscopo. Com que então tenho que esperar até dia 13 para começar um novo relacionamento. Já estou super entusiasmado com esta possibilidade e mal posso esperar pelo dia de amanhã, pois assim Sábado ficará ainda mais próximo. As minhas expectativas são já um balão de ar quente a roçar o telhado da atmosfera. O que é que me esperará? E como é que devo lidar com isto? Afinal de contas, como deveremos nós lidar com as expectativas?
Sento-me no Chiado e observo duas expectativas. A primeira em forma de mulher. Vestida com um fato de corte clássico. Cabelo apanhado e unha feita. Tem uma passada vigorosa e repleta de confiança, apesar dos dossiers e do computador que carrega. Hoje saberá se irá ser promovida. Para além do prestígio e orgulho, um cheque mais gordo no final de cada mês. A segunda expectativa é em forma de homem. Como roupa, umas calças largas e uma camisola de carapuço. Tem rastas e unhas sujas. Toca rock& roll na guitarra e faz o compasso com o pé esquerdo. Hoje constatará se gostam da sua música. Para além do reconhecimento e estímulo, uns trocos para o jantar do dia.
Gerir uma expectativa é talvez a batalha entre o valor que nós próprios atribuímos a uma coisa e a importância real dessa mesma coisa. Esta é no entanto uma luta desigual. O valor que nós próprios damos a determinada coisa, é muito mais forte e condicionante (ver certas realidades do mundo equilibra esta balança para o lado da importância real....tenho de escrever isto em letra pequena para não me acusarem de bater no ceguinho) . A mulher talvez não recupere se não for promovida. O homem continuará a sobreviver mesmo que a caixa da guitarra não some cinco euros. Ela talvez meta férias para reflectir. Ele continuará a ir para a rua tocar.
Um jantar que saiu queimado. Há quem faça um drama muito grande. Há quem diga que é apenas mais uma refeição.
Dia 13 poderei começar uma relação. Poderá ser a mulher da minha vida. Poderá ser mais um caso forte a mais. Ou afinal de contas, poderá não ser nada disso. Apenas mais um dia em forma de horóscopo...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A dimensão da tragédia

A dignidade da morte anda por aí. Abre telejornais, assina artigos de opinião e ocupa a boca de alguns comentadores. Seja lá para onde for que a gente se vire, ali está ela pronta a dizer-nos de sua justiça, o que se passa no Haiti. Corpos tratados como lixo e que muito emocionam os espectadores, os leitores e os ouvintes. Eu não fico indiferente a uma tragédia desta dimensão. Mas se a discussão é feita apenas sobre matéria, vou então falar do meu corpo. Quando eu morrer pouco me importa o que possa acontecer ao meu corpo. Se enterrado numa lixeira, se queimado com o desportivo do dia anterior, se retalhado numa aula de anatomia. Lançado aos tigres do jardim zoológico ou desfeito numa fábrica de sabonetes. Apenas sei que não quero que se faça qualquer memorial físico.
Portugal tem no Haiti pelo um menos um par de jornalistas de cada estação de televisão. Se o mesmo se passar com todos os outros países desenvolvidos, estaremos a falar de quantos jornalistas no teatro das operações? O mundo precisa de saber o que está a acontecer no Haiti. Serão estes relatos que potenciam a solidariedade que há dentro de nós? Sim, creio é um factor muito importante. O mundo ficou chocado com o que viu. Mas daqui a umas semanas já ninguém se irá lembrar. Será que este contingente noticioso irá lá estar daqui a um ano? E daqui a cinco ou dez anos?
Nunca interessa falar da dignidade da vida! O Haiti era dos países mais pobres do mundo. Alguém sabia disso? Não, claro que não. Isso nem é notícia. Não vende jornais e não aumenta o share de audiências. Nas minhas viagens por países pobres, sempre me perguntei, como certas coisas que vi, não eram notícia todos os dias.
A dimensão da tragédia não está no número de mortos. Está no número de vivos tratados como mortos. Se calhar eu é que sou burro, ou como um grande amigo meu me disse:"Desde que foste para a Tailândia que tens a mania" ... eu não fui à Tailândia...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Prova de esforço

Nem todas as provas de esforço precisam de um médico e de eléctrodos. No mundo dos afectos apenas precisamos de uma passadeira rolante para fazermos a nossa própria prova de esforço. Somos nós os nossos próprios clínicos e sensores. A passadeira rolante, nada mais é, do que o conjunto de vicissitudes da passagem do tempo por nós. Ao longo da vida somos muitas vezes confrontados com situações que requerem uma prova de esforço. A grande mairia das pessoas não tem essa consciência. Preferem arrastar-se doentes no mundo dos vivos, a arriscar um uppercut que as poderá levar novamente ao tapete. Existem no entanto pessoas que tem a coragem de realizar uma prova de esforço. A duração de cada uma depende do problema a avaliar e da capacidade que cada um tem para lidar com o mesmo. Perante o mesmo problema, algumas pessoas claudicam ao fim dos primeiros metros enquanto que outras resistem um pouco mais. Mas toda a gente cai. Mais ou menos vezes. As quedas na passadeira podem ser muito dolorosas e fazer tinir o sino da derrota, do desânimo e da perda de confiança. E acima de tudo, do medo de voltar ao mundo de fantasmas aonde nos encontavamos. De passar por tudo outra vez.
A busca da felicidade é a audácia de saltarmos para cima da passadeira. Independentemente das quedas que certamente nos esperam. E estar preparado para tombar novamente, é estar preparado para o dia em que não vamos cair. Para o momento em que vamos correr já sem sentir o chão por baixo dos nossos pés. E aí o sorriso volta. E com o regresso do sorriso, todo um mundo novo a descobrir :)