quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Desculpem, mas não temos açucar mascavado.

Poucos programas me cativam tanto como uma casa cheia de gente. Almoços que se prolongam por lanches e que merecem uma breve ceia de aconchego ao jantar. As pessoas como o prato principal de qualquer serão. Loucos são aqueles que ignoram semelhante iguaria. Receber pessoas em casa é para mim um verdadeiro privilégio. Optar pela minha casa é recusar o parque infantil de mil aventuras possíveis que é o mundo. Como poderia não dedicar-me a quem optou pela minha casa? Sou um anfitrião cuidadoso e atento. Principalmente humilde, porque apesar da fortuna de uma funda, sei bem o quão difícil é reunir os nossos afectos, quando esse Golias mundo ronda a todo o instante.

Existe a crença que o melhor das viagens é na verdade o regresso a casa. Não significa que a viagem em si, seja a constante tomada de consciência desse facto. Se assim o fosse, seria certamente um desperdício de tempo. Eu sou um sortudo pelos inúmeros regressos que realizei. Por alguma razão, e já o referi neste blog, a minha casa poderia ser o átrio das chegadas de um aeroporto. É o meu local preferido do mundo e apenas teria de arranjar um forma de, também aí, receber quem mais gosto. Vejo cada regresso como algo mágico e especial. Pouca importa a distância ou natureza da viagem.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Síndrome da bata branca

O hospital é a casa mãe das emoções. É a casa da partida e, na grande maioria das vezes, a última das moradas. A casa da partida e de chegada são os dois pólos que demarcam a amplitude das emoções. O que acontece de permeio, são apenas singelas aproximações às emoções sentidas quando perante estes dois extremos: nasceu, morreu. Apesar de o regresso à casa mãe estar previsto para que ocorra tarde no tempo, infelizes aqueles que, por infortuna e aleatória programação, têm de regressar precocemente ao hospital. Os profissionais de saúde são os mensageiros dessa miríade de emoções que se vive no hospital. Notícias tristes; alegres; esperançosas.

Grande parte da minha actividade profissional tem sido vivida no hospital. O meu trabalho mostrou-me particularmente bem a realidade do enfarte agudo de miocárdio e do acidente vascular cerebral (AVC). Estes dois graves acontecimentos, são a máscara que cai de uma série de doenças quase que invisíveis e indolores. São episódios súbitos carregados de dramatismo pela urgência a que obrigam e pelo desfecho que podem ter. As emoções que acompanham estes dois eventos médicos são por demais evidentes.

Um profissional de saúde é muito mais para além daquilo que efectivamente faz. A sua simples aparição traduz-se invariavelmente na acalmia do doente. Uma médica confirmou-me um dia aquilo que eu próprio suspeitava que se passaria em situações como o enfarte ou o AVC:  “Os doentes quando vêem a minha bata branca ficam imediatamente mais tranquilos”. Apesar de eu nunca ter passado por nenhuma situação de saúde grave, os relatos que escutei de inúmeros profissionais de saúde e tudo aquilo que observei nos corredores hospitalares, levam-me a crer que as coisas se passarão mesmo assim.

A cor branca numa peça de vestuário com a identidade de uma bata resulta assim numa automática reacção de relaxamento.  Este “síndrome de bata branca” não é de todo exclusivo dos médicos. Por alguma razão, os restantes profissionais de saúde que vemos nos hospitais (salvo excepções locais), estão vestidos de branco: enfermeiros; farmacêuticos; técnicos de análises clínicas. A bata branca está igualmente presente noutras áreas ligadas à saúde como as clínicas dentárias, ópticas ou centros de fisioterapia. O propósito é sempre o mesmo.

Os meus amigos referem muitas vezes a sorte que tenho pelo facto de estar casado com um médica. Naturalmente que reconheço as inúmeras vantagens que esta união oferece, mas esta também traz um grave problema: o síndrome da bata branca no lar. Não são raras as vezes que a minha mulher veste a bata branca em casa. Isto resulta tal e qual como num doente. Quando perante a bata branca dela não consigo mais criticar o pouco picante da comida, escolher o destino de férias que desejo ou ver jogo do Porto da liga dos campeões. Estou por isso totalmente refém da estratégia da bata branca. 

O mais doloroso é que este síndrome da bata branca não funciona no sentido inverso. Um deste dias apresentei-me na cozinha vestido com a bata branca dela e aquilo que escutei foi o seguinte:

 - Essa bata fica-te mesmo bem. Pareces mesmo um talhante. Se não te importas, arranja então tu o frango.

A minha expectativa é que um destes dias ela me veja de bata branca e julgue que sou uma cabeleireira...


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O meu é maior do que o teu

Não creio ser necessário uma grande exposição a respeito da expressão "o meu é maior do que o teu". Este blog tem certos limites que não ultrapassa e, por isso, mais vale deixar certos assuntos dentro do balneário. Por oposição, a comunicação social, põe a nu estes dias, dois despudorados donativos.
O primeiro por iniciativa do nosso governo (25.000 € para a reconstrução da faixa de Gaza) e o segundo por decisão da Câmara de Lisboa (40.000 € para a Fundação Mário Soares). Admito que o pouco que sei sobre estes donativos, advém do conteúdo noticioso, mas isso não invalida que eu me sinta respectivamente envergonhado e chocado.

Os problemas económicos de Portugal são evidentes, mas a nossa ajuda para a urgência humanitária que se vive em Gaza, é, como denominada pelo governo, “simbólica”? Se aquilo que podemos oferecer é um gesto simbólico, porque não optar pelo cacilheiro transformado pela Joana Vasconcelos? Sempre lá estariam uns azulejos dignos de apreciação e poder-se-ía ao mesmo tempo transportar algumas pessoas.
Em momento algum irei colocar em causa a importância da cultura no desenvolvimento de um povo, mas facto é, que li atentamente a apresentação e os estatutos da Fundação Mário Soares, e fiquei subitamente com dores nos rins. 40.000 €? Então que é feito das célebres dívidas dos municípios?

Como referi anteriormente, eu não consigo ter uma visão com critério e devidamente documentada. A única coisa que posso concluir, é que se estivéssemos num balneário, certamente que ouviríamos o presidente da câmara a dizer ao chefe do governo:  - O meu é maior do que o teu. (leia-se orçamento)





Que enchido você é? Faça já o teste.

Há muito tempo atrás dediquei um longo Outono à construção de um puzzle. Apesar de nessa altura ainda não o conhecer ao vivo, o tecto da Capela da Sistina mereceu a minha quase obsessiva dedicação durante aqueles meses. Tal empreitada apenas conheceu paralelo quando, muitos anos volvidos, devorei as Crónicas de Gelo e Fogo (vulgo, Guerra de Tronos). Quem leu os dez livros entenderá como ninguém o significado da palavra sofreguidão, pois dificilmente haverá outra forma de classificar tão empolgante leitura.

Não sou muito de acreditar no espiritismo dos búzios ou das cartas. Para ser o mais franco possível, búzios para mim são feijoada, e cartas são biscas secas e renúncias. O meu cepticismo no mundo do oculto capotou violentamente quando noutro dia me deparei na internet com o seguinte teste: "Qual a personagem da Guerra de Tronos que você é? Faça já o teste". Por várias vezes o neguei, mas a curiosidade foi demasiado forte. Apesar de não ter termo de comparação, mergulhei neste teste como se estivesse perante um pai-de-santo. O resultado do teste apanhou-me de calças na mão: Jaime Lannister.

Aquilo que efectivamente importa enaltecer, é esta possibilidade mágica de sabermos mais coisas sobre nós próprios: que animal,especiaria ou tempo somos; qual o nossa verdadeira profissão ou poder mágico; que música ou filme foi inspirada em nós. Naturalmente, que não poderia faltar, a informação clássica do espiritismo: qual o nosso destino. A resposta a um simples questionário na internet e uma nova vida que começa. No meu caso concreto, após saber que era o Jaime Lannister, reflecti sobre as maldades cometidas no passado. Acredito com todas as minhas forças que no futuro conseguirei redimir-me dos meus pecados.

Para grande pena minha, não existe porém o teste que em minha opinião mais poderia contribuir para o nosso autoconhecimento - Que enchido você é? - Alheira ou chouriça moira? Butelo ou morçela de arroz? Painho ou farinheira? Porque todos nós somos sal, fumo ou sangue. Há quem seja muito porco ou quem tenha tripa grossa. Uns carne gorda, outros praticamente só ossos. Cada qual com a sua cura específica, mas todos pendurados.  

Enquanto aguardo pelo teste, nada melhor do que um puzzle de um tecto repleto de enchidos...



segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O papel higiénico solidário

A decisão sobre qual o papel higiénico a comprar obedece normalmente ao balanço de dois critérios: marca portuguesa e número de rolos. Na passada segunda-feira, um critério maior falou mais alto no momento da selecção:  a solidariedade. Descobri que uma determinada Organização Não Governamental (ONG) da área da saúde, comercializa uma vasta gama de produtos, um dos quais, o papel higiénico. Este apresentava-se assim como um forma extremamente simples de contribuição social, e por isso, não houve qualquer hesitação no momento da compra.

O papel higiénico foi adoptado no lar e nada de relevante haveria a relatar até ao dia em que eu me constipei. Até esse o momento, o papel higiénico tinha apenas sido utilizado para a sua função primária, e nesse capítulo, não existiam queixas sobre a sua capacidade de absorção ou macieza. O problema encontrado foi efectivamente outro: o cheiro. Comecei a utilizar o papel higiénico para limpar o nariz e a princípio tudo também corria bem. Há medida que fui melhorando, e que algum ar começou finalmente a circular dentro das minhas narinas, apercebi-me então do indescritivel mau cheiro do papel.

Apesar de não ter conseguido comprovar na embalagem, acredito que este papel higiénico tenha origem em papel reciclado. A grande questão está em saber que tipo de papel reciclado foi efectivamente utilizado. Facturas do gás e da electricidade? Multas de estacionamento? Recibos de ordenado? Certamente que todos nós, em algum momento, escutamos ou proferimos o desejo de limpar o dito cujo a um destes papeis (é importante deixar claro que é a e não com uma vez que o sentido da intenção é distinto).

Infelizmente, o cheiro do papel higiénico solidário, é por de mais nauseabundo para que eu acredite, que este tenha como base as facturas, multas e recibos. Não que estes não sejam uma verdadeira trampa, mas mesmo assim, ainda estão muito longe da pestilência sentida no papel higiénico solidário. Para grande pena minha, apenas posso concluir, que o papel higiénico solidário advém, nada mais nada menos, de papel higiénico intensivamente utilizado na sua função primária.

O que realmente me intriga, é como raio terão conseguido unir de novo todas as diferentes porções de papel higiénico utilizado. Este processo não deverá ser nada fácil porque não existe um padrão de utilização de papel higiénico. Por um lado, há quem se consiga governar com um ou dois quadradinhos de papel higiénico, e por oposição, há quem coma muito feijoada.

Uma vez que a ONG trabalha com fundos muito limitados, certamente que o processo de produção da sua marca de papel higiénico, é conduzido de forma manual. Este facto, só por si, dá imediatamente a este papel higiénico, o rótulo de solidário. Tal como o papel, espero que todos vós se compadeçam da minha causa, pois ainda faltam 35 rolos...

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A Paciência

Há quinze anos atrás troquei um punhado de cartas com um parente. Passado tanto tempo, acredito hoje, que o termo de tal correspondência, se deveu exclusivamente a mim. Os estímulos da juventude condicionavam a minha vida como se eu já estivesse atrasado no tempo. Não sei o que perdi na infância e na adolescência, para que na juventude sentisse tal urgência em correr. A perspectiva do tempo, que então ignorava, era no entanto para o meu parente, uma declarada preocupação: "O maior óbice está no tempo que, como deves imaginar, no meu caso apresenta um saldo muito baixo".

Não há nada que eu admire mais do que um idoso. A sociedade, como em tantas coisas mais, adianta inúmeros critérios para a definição de idoso. A reforma ou o desconto nos bilhetes de comboio são dois bons exemplos. Estes indicadores poderão ser muito úteis para uma consciência colectiva, mas a definição de idoso, em minha opinião, apenas ao próprio diz respeito.
Eu fui o último familiar a viver com a mãe do meu parente. Numa determinada noite, despertei com um inaudível gemido de dor. O cenário que encontrei na sua casa de banho perturbou-me imenso mas fiz aquilo que tinha de ser feito. Ela chorava baixinho enquanto eu a limpava e a carregava de novo para a cama. No jantar do dia seguinte ela agradeceu-me e pediu-me desculpa. Custou-me mais isso do que a cena do dia anterior. Na casa de banho encontrei uma mulher deitada no chão, mas naquela cozinha encontrei uma idosa a despedir-se de mim.

Os mais velhos são os que mais sofreram. Viram partir grande parte dos seus afectos fossem estes de sangue ou por eles escolhidos. Muitos despediram-se até daqueles de que não era suposto. Folhas verdes arrancadas à árvore da vida, apenas, e só, porque sim. Os mais velhos são também os que mais perdem. Agora precisam de ajuda para carregar o saco das compras ou que alguém lhes recorde o nome dos filhos. Não conseguem mais controlar muitos dos seus gestos. O que é que move os idosos quando tudo lhes parece travar o caminho? A paciência poderá ser a resposta.

Para ser sincero, acredito que a paciência é uma faculdade exclusiva dos idosos. Os comportamentos mais tolerantes que se observam em idades mais tenras são meros laivos de paciência. Apenas um idoso consegue aguardar uma semana inteira por uma visita ou um telefonema. Muitos poderão já não reconhecer a identidade dos afectos, mas continuarão sempre à espera. O pai do meu parente dedicava horas intermináveis aos seus dois baralhos de cartas. O jogo da paciência era a sua companhia. Não sei se o meu parente terá herdado o gosto pelo jogo de cartas. Talvez não tenha tempo e, ainda hoje, aguarde ansiosamente, a carta que nunca lhe escrevi...