segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Prato do dia

Poucos minutos após a divulgação dos resultados das eleições primárias de ontem, dei por mim a pensar nos placares das autoestradas que nos indicam o preço dos combustíveis praticados nas diferentes estações de serviço. Em que é que nós condutores beneficiamos das informações sobre os preço dos combustíveis. Vamos por hipótese imaginar um condutor a caminho do Norte de Portugal pela A1. Poucos quilometro antes da estação de serviço de Aveiras terá a indicação sobre  o preço dos combustíveis aí praticado. O mesmo painel terá igualmente a informação relativa às duas bombas de gasolina seguintes. Apesar da velocidade elevada a que se circula na autoestrada, não passará a ninguém despercebido, que os preços dos combustíveis são iguais independentemente da estação de serviço. O que se observa de Aveiras a Antuã é por isso transversal a todas as outra autoestradas. A resposta à questão que coloquei parece-me por isso bastante óbvia: os ditos painéis não servem absolutamente para nada.

Uma vez que o preço do combustível é o mesmo, a selecção da estação de serviço como é que é feita? O cartão de desconto ou a higiene dos espaços, poderão ser critérios relevantes. A distância para a gasolineira será certamente muito importante, principalmente se o tanque de combustível se encontrar na reserva. Eu esforço-me por acreditar que o critério principal, é, na verdade, a comida. Deste modo poderemos finalmente dar uma real utilidade aos placares informativos. Em vez do preço dos combustíveis os painéis apresentariam o prato do dia de cada uma das estações. Se utilizarmos o mesmo condutor que referi anteriormente, este ficará assim a saber que dali a dois quilómetro haverá "bochechas estufadas", em Santarém "ervilhas com ovo escalfado" e que o prato do dia em Leiria será "filetes de pescada". Estas informações poderiam até funcionar como um tónico motivacional para os condutores mais sonolentos: abre-se o apetite, abre-se a pestana.


Os candidatos a primeiro ministro, à imagem do que as gasolineiras fazem com o preço dos combustíveis, não se distinguiram em termos das suas políticas. Se a minha proposta para os placares informativos tivesse sido aplicada às eleições primárias, talvez, pelo menos, tivéssemos ficado a saber como cada um gosta do bacalhau. A única coisa que realmente sabemos, e pegando novamente no peixe preferido dos portugueses,  é que um deles é hoje um “bacalhau com todos” enquanto que o outro, é uma “roupa velha”. Vamos lá ver se não acabam em “bolinhos”...

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O Lado Negro

Ela está sentada à minha frente mas de costas voltadas para mim. Não imagino o que ela estará a estudar, mas consigo perceber inúmeros gráficos num livro aberto. Um marcador fluorescente amarelo sublinha as frases mais relevantes de uma sebenta que parece estar já bastante usada. Ela está demasiado debruçada sobre a mesa. Será por uma questão de postura ou um problema de visão? Impossível saber. Apesar de não lhe ver face, os seus gestos parecem traduzir uma certa ansiedade. Sim, ela está nervosa. Aposto que se tratará da repetição de um exame. Certamente não será a primeira vez que o fará.

Hoje a biblioteca está mais agitada que o habitual. As mesas estão praticamente todas preenchidas. É um claro sinal que o Verão terminou. Setembro é a época de recurso, os primeiros trabalhos de grupo, o retomar daquilo que se interrompeu nas férias. Há um ruído que preenche toda a sala de estudo. Cada mesa contribui com a sua parte. Eu próprio colaboro nesta peculiar canção urbana através do teclar descompassado deste texto. A música que se liberta dos meus auscultadores barra a entrada a todo este ruído. Basta olhar os gestos dos que me rodeiam para compreender o nível de agitação que se faz sentir.

Apesar de se encontrar numa das extremidades da sala de estudo, está claro que este barulho lhe é insuportável. A cada momento, volta-se para trás e prospecta toda a audiência em busca da origem do alvoroço. O seu olhar é o bramir do grito de fúria que tem de calar. Levanta-se e vai repreender um grupo de rapazes que partilha uma mesa. A batalha com o estudo parece dependente do sucesso da sua demanda pelo silêncio. Olha novamente para trás. Duas vezes, quatro vezes. O seu olhar é pólvora fulminante

Começo a ficar tão exasperado quanto ela. Para mim pouco me importa que esteja muito ou pouco barulho. Não consigo é suportar os seus movimentos. Apesar de estar focado neste monitor é impossível abstrair-me do que se está a passar mesmo à minha frente. Cada vez que ela se volta para indagar a sala, os nossos olhares esbarram de forma instintiva. Sete vezes, dez vezes. Neste momento ela poderia até ser a mulher mais bonita do mundo. Só quero que ela se vá embora ou que pare quieta de uma vez. Onze vezes, vinte vezes. Espero mesmo que ela reprove na porcaria do exame. Não suporto mais esta constância de movimentos na minha direcção.

Levanto-me com a intenção de educadamente a alertar para o quanto me está a incomodar. Não me apercebo que o meu espírito está já tomado pelo meu lado mais negro e não vou a tempo de evitar a tragédia.

"- Pare de olhar para trás. Daqui não leva nada. Sou um homem casado".

Não mais se mexeu.
   

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Professor Balança

Os legumes e frutas mais frescos chegam sempre com a manhã. Isto é tão verdade na cidade como no campo. Se numa encontramos prateleiras refrigeradas e arcas frigoríficas, na outra temos as gotas do orvalho e a colheita pela alvorada. Já aqui dei conta da minha preferência, mas infelizmente, o campo é demasiado longe da cidade. Nunca houve uma real aposta em rodovias destinadas a tractores e carroças, apesar, por exemplo, dos muitos burros que circulam nas estradas. A média de idades das pessoas que acorrem pela manhã ao supermercado a que vou ultrapassa largamente os 70 anos. Na grande maioria das vezes, o supermercado ainda nem abriu, e já por lá aguardam inúmeras rugas e artroses.  Estou em crer que a motivação principal para tão cedo despertar, será comum entre todos: a frescura das frutas e legumes. 

Numa destas manhãs fomos todos surpreendidos pela ausência do funcionário que se encarrega de pesar as frutas e legumes. Ao invés do dito funcionário, o supermercado disponibilizou uma balança toda moderna em que são os próprios clientes a tratar do assunto. Uma vez que os velhos apalpam as frutas e legumes muito mais do que eu, fui a primeira pessoa a chegar junto da balança. Não precisei de qualquer livro de instruções e de imediato comecei a pesar as muitas frutas e legumes que compunham o meu cesto. Apesar da minha agilidade de movimentos, num instante me vi rodeado por imensos velhotes. Os seus olhos, enquanto tentavam acompanhar os meus movimentos, traduziam o pânico da ignorância. Algumas vozes começaram a ouvir-se: “Ai que complicado!”; “Este moço é tão rápido.”; “Onde estará o funcionário?”.


Não sei se realmente precisaria de outras coisas, mas depois de ter pesado tudo o que tinha, facto é, que permaneci na secção das frutas e legumes. A confusão rapidamente estalou em torno da balança pois ninguém sabia como proceder. Aproximei-me tranquilamente do já numeroso grupo e disponibilizei-me a ajudar. Os sorridentes velhotes só desarmaram quando colei a última etiqueta num alho-francês. Pelo meio, o pico máximo da boa disposição quando lhes mostrei que o melão estava classificado como legume. Um dos velhotes apelidou-me de “Professor Balança”, nome esse que teve a concordância de todos. Amanhã preciso de ir novamente ao supermercado. Será que terei novos alunos? 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Mulheres fatais dispostas a tudo

Chegaste à minha vida adornada em tons de antracite. Desses três dias em que estivemos juntos, recordo ainda o teu vestido preto. Apesar da invulgar beleza dos teus traços, odiei-te desde a primeira hora. Não te sei dizer o que mais me repugnou, se o teu amargo interior ou se o fascínio que parecias suscitar, em todos os demais. Acreditei que o facto de coincidirmos aqueles dias em casa do meu irmão, se teria tratado apenas de um infeliz acaso. Nunca pensei que a tão breve prazo te encontraria novamente.

Comecei a esbarrar contigo em todos os locais que frequento, como se de repente tivesses decidido tomar a minha vida como tua. Não sei porque o fizeste, mas aposto que nunca terias imaginado, que alguém um dia, te poderia negar. Foram inúmeras as vozes que clamaram junto de mim em teu favor. Gabaram a elegância dos teus movimentos, a subtileza dos teus perfumes. Como se fosses a incarnação perfeita da espuma que baila no colo das ondas do mar. Particularmente enalteceram a riqueza das tuas múltiplas personalidades. A cor do teu vestido como o reflexo do que és em cada momento. Toda uma explosão quando de azul-escuro, mais delicada quando de vermelho. És a actriz que em palco representa aquilo que cada um dos espectadores intimamente quer ver. És a mulher que passeia junto do actor de cinema mas que todos os dias aconchega um qualquer plebeu. A plateia adora-te por isso. Por essa porção de glamour que trazes às suas vidas simples.

Hoje pergunto-me se algum de nós estaria preparado para a tua chegada. Eu claramente que fui apanhado desprevenido. Ingenuamente acreditei que serias apenas uma moda passageira e que um dia a vida voltaria ao de antigamente. O quanto estava enganado. Para além de não desapareceres, começaste a ser objecto de reproduções. O mundo tomou-te como referência e foram muitas as que quiseram assemelhar-se contigo. Com os mesmos jeitos, os mesmos equívocos. Mulheres fatais dispostas a tudo. Tenho dificuldades em recordar bofetada semelhante, aquela que senti, quando conheci uma das tuas pseudo-imitações. Não me atrevi sequer a censurá-la, pois ambos sabemos que a culpada és tu e eu nunca te irei perdoar por isso. O mundo toma-te por uma coisa que não és. Não me cansarei de gritar ao mundo que és um produto corrosivo...nunca serás um café... odeio-te Nexpresso...