terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Para lá daqueles montes

Há um lugarejo ao qual pertenço para lá daqueles montes. Nado e criado em latitudes mais a Sul, mas ainda assim, filho das gentes dessa terra. Nas minhas veias tão pouco corre o sangue gélido daquele granito. Chamaram-me de Pistolas no dia em que me conheceram. Mas muitos anos antes, e diante a pia baptismal, outros deram-me o nome de João. A liberdade do pecado original em troca da minha verdadeira identidade? Por que na verdade, é a alcunha de Pistolas que me liga ao chão. À genuidade e pureza do ser humano. Nunca lá vi as perdizes que dão o nome a esse vilar, mas testemunhei carrinhas cravejadas de balas de G3. Museus vivos dos tempos áureos do contrabando em que se acendiam cigarros com notas de vinte escudos. Haverá um caldo de sopa quente à minha espera acompanhado por um carrilhão de insultos. A minha prolongada ausência assim o justifica. Cometerei ingenuamente o habitual erro de cortar o pão e o chouriço, à moda da cidade. E enquanto o carvalho faz o braseiro, o riso irá fluirá à minha custa. Ninguém me virá acordar, mas irei despertar ainda de noite. As caras familiares estarão todas reunidas ao pé do barracão, enquanto eu ainda tento aquecer as mãos no forro dos bolsos. As facas são afiadas e os porcos morrem de um só golpe. Fico sempre supreendido como a tensão desaparece num instante. A minha, e a dos animais. Há trabalho para fazer, mas ao mesmo tempo, já há fogo pronto para as assaduras, e o velho pote de ferro, ferve o sangue que ainda há pouco jorrava. E haverá depois uma malga de vinho para brindar a estes comeres. Quem sabe até, uma ida ao café, para uma bebida generosa. O focinho fumado irá à sucapa cair-me no prato quando nos dispusermos na mesa. Haverá vozes de protesto mas a Helena tratará de me defender tal como uma mãe protege uma cria. "Sois todos uns preguiçosos. O Pistolas é o único que trabalha". Uma das poucas injustiças que honestamente não me revolta. Irei acompanhar o Xeris pela raia espanhola na venda do pão. Haverá rugas galegas a dizer "Hoxe trouxese guardaespaldas? Déixase o estar comigo". E enquanto a carrinha ginga monte acima ouvirei as últimas da terra. O João Barraqueiro andará à urze e às giestas que manterão quente o forno do Revisor. Oirá divertir-se com a minha destreza a amassar o pão e que certamente me valerá as sempre sábias palavras transmontanas do Eliseu:"Minhotos e galegos é vê-los é fodê-los". O Acácio certamente que reclamará uma madrugada a sós comigo para a desmancha dos presuntos... E ainda haverá tempo para cortar abóboras e quase perder um dedo. Para lançar biscas de trunfo secas e de sofrer golos impossíveis na mesa dos matrecos. O frio da geada ganha expressão na forma como me querem. Nas gargalhadas que se fazem ouvir. Tal como a Carla escreveu: "A minha mãe ( e o resto do povo de Vilar) tambem não falava de outra coisa a não ser do Pistolas na matança. Dizia que fazias falta pelo menos para fazer rir...". Aqui reside o nosso acordo. Eu faço-os rir, eles dão-me quem são. O coldre está colocado...

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Cartografia

A noite cai adiantada no tempo, mas a luz permanece com a mesma intensidade. As bruxas assobiam em tom menor, mas a canção segue as notas da partitura. O frio gela o Outono das folhas perenes, mas o calor continua quente. Lá fora tudo se desmorona, mas junto de ti, a claridade, a melodia e o aconchego, parecem não ter fim. Quem me dera poder compreender como o fazes. Tenho tentado cartografar a tua geografia na vã esperança de conhecer os vales da tua magia. Não estivesses tu em constante erosão, e poderia aspirar a consegui-lo. Mas hoje és rocha firme que suporta o peso do meu corpo, amanhã és areia fina que ri por entre os dedos dos meus pés. Num corropio constante, como se de um jogo de esconde-esconde se tratasse.
Não sei como é que me aguentas. A minha ansiedade, eloquência e revolta. Mas dás-te a beber de um só trago, dizes palavras que nunca escutei, mostras-me o outro lado da amurada. Quando muitas vezes és vinho que precisa de respirar, silêncio que tem de ser ouvido, quietude a ser celebrada. Talvez sejas apenas a projecção dos meus sonhos. O meu mundo perfeito espelhado na tela de um cinema. Mas mesmo quando acordo, e a luz do projector se apaga, continuo a sentir-te junto da minha pele. Por isso te trato como se existisses, e te continue a procurar, nos esboços e traços, de que é feita a minha vida...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A multiplicação das pequenas coisas

Três cubos de gelo e uma bebida licorosa. Camisola larga e meias grossas com borbotos. Meia luz e fados de Lisboa. Tanta coisa para escrever e a necessidade de recorrer a estes desbloqueadores. Afinal, nem sempre basta olhar para aquele jardim onde agora caem folhas secas. Para o pai que seca o cabelo à filha no balneário da piscina. Ou para o músico que dedilha na passagem subterrânea. Imagens que são matéria prima para os sonhos que depois realizo. No conforto da cadeira do eu, onde há apenas espaço para mim. E estas palavras como sinopse do imaginado.
No mundo do vivido, não posso deixar de brindar à multiplicação das pequenas coisas. Sejam elas uma carteira que foi um pacote de leite gordo, uma empada que ontem era um frango assado, um pano de limpar o pó que sempre tinha sido lençol de flanela.
Mas é a recriação das vivências que me desarma. A capacidade de criar novos enredos em volta de uma mesma história é um convite ao meu interesse. Delicio-me com as novas intrigas, ardis e logros. Sem qualquer facto novo e verdadeiro a acrescentar à história. Como se a mesma tivesse parado no tempo e nada mais houvesse para dizer. Por vezes até as mesmas graças, piadas e gozos. Tudo sempre pincelado por uma criatividade improvisada no momento, que se pode traduzir num tom de voz mais grave, num careta mais ousada ou num esbracejar fora do comum.
E assim volto a rir das mesmas coisas. Por que afinal já não são bem as mesmas coisas. São como folhas novas de Primavera. Mesmo que as raízes destas vivências um dia se encontrem demasiado enterradas para nos podermos lembrar da história original, não há dúvidas da origem dessas folhas. A certeza que num dia, algo se terá vivido.
A arte de fazer render o peixe ou de multiplicar os pães, não é um exercício de nostalgia ou de saborear o tempo que já não volta. É sim o desejo de novas aventuras, empresas e jornadas. Pelo menos, quero acreditar que sim...

terça-feira, 9 de novembro de 2010

30 anos de queijo

Uma amiga minha completa hoje 30 anos e pediu-me que escrevesse um texto sobre a celebração de tal mítico número. Há pouco mais de um ano discuti este assunto com uma malaia e um alemão numa noite de céu estrelado. Deitados no convés de um barco vietnamita e embalados pelas tranquilas águas do mar da China, descobrimos os fundamentos da magia associada ao festejo de cada década de existência. Recordo-me perfeitamente das ideias que criamos, mas hoje apenas me apetece escrever sobre queijo.
Tenho uma relação platónica com este derivado do leite. Nunca me irei envolver fisicamente com qualquer queijo. Confesso que por vezes chego a vias de facto com uma tórrida Mozzarella, mas isso nada mais é que uma amizade colorida. Eu adorava poder amar o queijo de corpo e alma como ele bem merece. Infelizmente o olfacto e o paladar não permitem que isso aconteça. Por vezes chega até a haver objecções por parte da visão, do tacto e da audição.
O queijo é o único alimento que eu não como. Declinei os convites deste lacticínio nos últimos 30 anos. Todo este tempo já deveria ser mais do que suficiente para o "assunto queijo" não ser sequer mencionado no que diz respeito à minha vida. Mas ainda bem que o queijo continua a estar na minha agenda diária. Seja por um momentâneo lapso familiar ou por uma pergunta de alguém que se acaba de conhecer. O fantástico destes 30 anos de queijo reside exactamente aqui.
Desculpem não concretizar a minha ideia em pormenor, mas agora preciso de sair pois tenho um encontro escaldante com uma Mozzarella derretidinha por mim...

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Amanhã é que vai ser

Amanhã é que vai ser. A decisão está tomada. Nada voltará a ser igual. Uma nova vida começa. É tempo de o presente ser o futuro. A revolução chegou.

A tradição mostra o quão actual ainda se encontra. O dogma afirma que as definições são imutáveis. A máxima conta que ganhou o seu estatuto por mérito próprio. A rotina diz que sem mim deixa de fazer sentido. A ordem adverte para os problemas da anarquia. O costume recorda as vezes que o enuncio. A estabilidade aconselha sobre os malefícios da mudança. O hábito admite negociar não se fazer notar tanto. A norma jura que assinou um contrato vitalício. O uso mostra o quanto temos sido felizes juntos. A regra lembra que fui eu que a quis. A doutrina sente que ainda é nova para se reformar. O preceito protesta que foi sempre tudo feito em função dele. O modelo pergunta em quem mais se poderá encaixar. A lei argumenta que as alterações não estão contidas nela. O princípio ri nervosamente do fim que se avizinha.

Talvez deva pensar um dia mais...

A seguir de amanhã é que vai ser...

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Saltar à corda

Anda para aí uma moda pegada no que toca a fotografias que eu ainda estou para perceber. Mas o que é isto de se andar a tirar fotografias em que aparentemente se está a voar? Acho que não é preciso ter um canudo de Biologia Aplicada para perceber o significado da palavra “terrestre”.
É pertinente por isso tentar compreender o racional por detrás desses patéticos saltos, que na sua larga maioria nem sequer atingem os 70 cm. Não sei se é apenas influência de uma famosa bebida energética ou se devido a algo de uma maior complexidade. Como não poderia deixar de ser, inclino-me mais para a segunda opção. Mas desta vez confesso que não é pela minha apetência pelas missões impossíveis, mas sim pela falta de credibilidade que a primeira hipótese sustenta. Sei que me arrisco a um certificado de ignorância, mas não posso conceber que alguém realmente acredite, que o touro vermelho ofereça asas. Se fosse uma galinha fuxia ou uma avestruz azul petróleo, não teria quisquer dúvidas que fosse verdade.
A minha teoria explicativa sobre esta complexa questão alicerça em dois pilares: infantilidade e imaginação. Quem nunca brincou a saltar à corda quando era criança? Não me consigo lembrar de actividade mais mobilizadora do que esta. Encontrar o ritmo de salto certo no meio de uma divertida cantilena, é sem dúvida alguma, a melhor receita para uma farta barrigada de riso. E é exactamente esta alegria intemporal que faz com que até os avós gostem de colocar à prova a forma da sua agilidade. O que não se vê efectivamente nas fotografias é a corda, mas o que é facto, é que ela lá está. E o mais fantástico disto tudo é que nem é preciso ter alguém a dar à corda. Antes que os mais cépticos se voltem para o touro vermelho, aqui fica o grande segredo das fotografias: o que as pessoas estão efectivamente a fazer é a divertirem-se a saltar paralelos e meridianos! E é claro que isso merece ser fotografado…

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Amígdalite

Estou a começar a sentir-me bastante doente. A mão ampara a febre, os olhos têm dificuldades em permanecer abertos e a garganta ruge de dor a cada deglutição. Talvez eu descure em demasia a saúde das minhas amígdalas para elas terem necessidade de se revoltar de quando em vez. O que é facto é que o mal já está feito e agora pouco mais me resta a fazer a não ser agonizar até conseguir adormecer. Bem sei que esta maleita poderia rapidamente desaparecer se partilhasse a mesma no Facebook. Parece-me que os dias das pessoas que partilham coisas como "apetece-me chantilly", "nunca mais é sexta" ou "hoje vou ao dentista", tornam-se imensamente melhores com os comentários que a malta vai lá colocar. No entanto, as poucas forças que me restam, apenas me permitem uma coisa só: fazer uma reflexão sobre a causa desta amígdalite. A singular origem do meu mal estar é muito clara: falar de mais. As reguadas da Professora Maria de Lurdes pelos vistos não tiveram o desejado efeito de longo prazo. E bem que eu precisava de aprender a estar calado.
O problema não está na minha qualidade de orador, mas sim na constante tentativa de intervir na vida dos outros. Isto de querer mudar o mundo é uma valente chatice. Eu não consigo parar de vomitar palavras. Mas à quantidade de purgantes verbais que ouço, qualquer dia já vomito monelhos de cabelo. Talvez não fosse pior...
É que há discussões que não levam realmente a lado nenhum e eu teimo em estar no pelotão da frente para as começar! Estou farto do mal estar provocado por estas amígdalites. Lanço por isso aqui um repto a todos os que falam comigo: de cada vez que a conversa comece a dar para o torto obriguem-me a comer um bife duro como uma pedra e cheio de nervos. É uma favor que me fazem, pois enquanto mastigo é certo que não falo, ou não fosse eu um cumpridor das regras de etiqueta...

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sandes de courato

Talvez tivesses tido como almoço uma triste sandes de courato,
Acompanhada por um copo de leite ainda com o IVA a 6%.
Para te aliviares deste uma corrida para junto daquele mato,
Que um dia será convertido em mais um bloco de cimento.

Ainda apertavas a braguilha quando deste pelo meu carro prateado,
Ali junto ao muro do Santa Maria de quem vira para o ISCTE.
Apesar dos riscos e amolgadelas, tinha ar de nunca ter sido roubado,
E até tinha em cima do tablier o último CD do Camané.

Partiste o pequenino vidro de trás e entraste sem pedir licença,
Tomaste a viatura como tua e não te inibiste de pentear o bigode.
E como existem dias em que o crime realmente compensa,
Acabou por te sair a sorte grande quando descobriste o meu ipod.

Imagino que o queiras vender mas convido-te a ouvir as suas músicas,
Onde encontrarás sons de ontem, de hoje e de amanhã também.
Músicas para momentos sérios ou para ocasiões mais lúdicas,
Como é o caso da bem cheirosa feira agrícola de Santarém.

Desfruta muito do Marco Paulo, da Dina e do Tony Carreira,
Do Rancho Folclórico Poveiro e do José Barata Moura.
Excelentes razões para não ires a correr trocar o ipod à feira,
Por uma qualquer bugiganga ou azeitonas a saber a salmoura.

Fico por aqui nestes versos de muito pouca imaginação,
Escritos sem dramatismos e sem grande espalhafato.
Mas não parto sem desejar do fundo do coração,
Que amanhã voltes à tua triste sandes de courato.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Bacalhau à lagareiro

No próximo fim de semana vou fazer um "Bacalhau à lagareiro". Tomei esta decisão no passado sábado enquanto caminhava ao longo da praia. Os armados em sensíveis dirão que o passeio marítimo merece ser honrado com pensamentos mais eloquentes. Eu sei que sim meus queridos, mas a diarreia também pode aparecer enquanto se assiste a um espectáculo de ópera, não é? O que é facto é que enquanto me dirigia para o courts de squash e me cruzava com toalhas estendidas, namorados a apanhar beijinhos e crianças a jogar à apanhada, apenas conseguia lamber os beiços a pensar numa bela posta de bacalhau à lagareiro. O processo mental de tomada de decisão foi bastante simples: “Apetece-me comer bacalhau à lagareiro. Vou cozinhar bacalhau à lagareiro”.
Claro que os armados em modernos considerarão patético eu ter decidido com uma semana de avanço aquilo que irei cozinhar. Mas é exactamente por isso meus fofos que vocês têm de ir ao supermercado às 13h35 porque perceberam às 13h30 que afinal precisam de bechamel ou de champignons.
A minha mãe tratou de me fazer o briefing de como fazer a dita iguaria. Tive algumas dúvidas no atalho que me sugeriu para a confecção das batatas, mas acabei por registar tudo direitinho na minha cabeça. Como nem toda a gente pode privar com uma cozinheira 5 estrelas Michelin, fui pesquisar à internet que gato por lebre anda o povão a comer, no que toca a bacalhau à lagareiro. E não é que a sexta referência na internet no que toca a este prato vem do site do Jamie Oliver? Mesmo que não leve bacalhau, olive oil é certinho...

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Lucidez calórica

Juntei-me recentemente a um grupo de marginais: os magros! Não foi uma gravidez programada, mas o que é facto é que aconteceu, e estou bastante satisfeito com isso. A Ásia libertou-me de 6 Kg. Não há nada de muito anormal neste acontecimento. Haverá certamente alguma lei da física que explique que para determinadas coisas poderem entrar, outras têm necessariamente de sair. Uma das grandes aquisições da época passada é sem dúvida alguma, o reforço do sentido da urgência, de reduzir determinadas necessidades. Há muito que o Jorge Palma me ilumina com as suas palavras : somos todos escravos do que precisamos, reduz as necessidades se queres passar bem. Assistir à fome in situ é um bom fermento para a interiorização deste caminho. Para o fazer, não precisei de romper o acordo de fidelidade que tenho com as emoções do paladar. Na verdade, esta aliança ficou ainda mais forte, pela adição dos inúmeros sabores diferentes que pude conhecer.
O que é realmente bizarro para muita gente, é o facto de já terem passado 10 meses desde o meu regresso, e não haver forma de eu ultrapassar os 62Kg. A pressão em redor do meu peso começa a atingir níveis preocupantes. Eu neste momento encontro-me em alerta laranja, pois a crer pelas minhas fontes, poderei a qualquer momento, ser alvo de uma tentativa de engorda. As embalagens de Nestum Figos depositados à porta de minha casa são um claro indicador do escalar do problema.
Enquanto mantenho a lucidez calórica e nada de grave me acontece, sinto ser meu dever, partilhar com a comunidade magra, como cheguei a esta situação limite. O meu problema não foi efectivamente o meu peso, mas sim a forma como reagi perante os comentários sobre o mesmo. São incontáveis as vezes que tive de ouvir "estás muito magro, não tens cu para as calças, qualquer dia desapareces". Desculpava-me quase sempre do mesmo modo: "é do cabelo rapado, é o meu estilo asiático, sinto-me bem assim". As minhas respostas eram sempre insatisfatórias e a conversa era invariavelmente rematada com: "agora comes rabanadas de vento, as tuas pernas estão dois palitos, pareces um tuberculoso". A boa educação obrigava-me a assentir com um humilde sorriso. É importante no entanto referir, que estes comentários menos simpáticos foram todos proferidos por mulheres. Como para os homens tudo se pode resumir a um jogo de futebol, nada melhor do que ter como companheiro de equipa, um jogador que mais parece uma gazela à solta.
Coincidiu encontrar uma grande amiga minha num dia em que o habitual jogo de futebol tinha sido cancelado. A minha disposição não era das melhores, e assim que ela disparou à queima-roupa, " - Tu estás só pele e osso!", ripostei de imediato"- E tu estás só carne e gordura".
As minhas acções falam por mim, e não é por isso de estranhar, que tenha a soleira da porta, ocupada por ameçadores pacotes de Nestum Figos. E tudo poderia ter sido evitado caso o jogo de futebol não tivesse sido cancelado...

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Um café na cidade

Nesta cidade há um café que permanece. Todas as noites se cumpre o mesmo ritual: correm-se as cortinas, tranca-se a porta, baixam-se as luzes. Os clientes são educadamente convidados a sair, os amigos tomam todo o espaço que lhes pertence. Puxam-se cigarros que nunca poderiam ser acesos, riscam-se pentes de sueca em blocos de notas, servem-se bebidas que não estão à venda. Existe todo um acenar de personalidade nestes gestos. A génese da identidade deste café reside nestes momentos de cumplicidade. No voltar à base, na desconstrução da personagem.
Pouco importa se este convívio se resume a breves fugazes instantes. Está lá tudo na mesma, como numa qualquer semente. O ar fica impregnado por um aura de reconhecimento. E é esta brisa que dia após dia cativa os seus clientes.
Por vezes pergunto-me se serei como este café. Cerrando a porta aos clientes deixando-me ficar na familiaridade dos afectos, referências e convicções. Purgando o lixo diário de interacções, no conforto de saber quem realmente sou. Vivendo constantemente suportado por estas terríveis forças de segurança. Cedendo a este poderoso magnetismo invisível que me mantém igual. Passando o tempo a fazer a manutenção das fundações e alicerces. Tudo assim no gerúndio.
Olho para mim e apenas vejo um projecto. Não chego sequer a ser uma obra inacabada. Conheço apenas um leve esboço daquilo que poderei ser. Talvez eu seja um barro difícil de moldar. Mas sou também o oleiro responsável por me criar. E se a decisão me cabe a mim, não quero ser como esse café na cidade...

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Terminal 2

A minha vida não cabe nestes textos que por aqui escrevo. Tento mostrar-me ao mundo por entre palavras aprumadas e frases a preceito, mas, tudo aquilo que escrevo, é apenas uma ténue imagem de quem sou. Aquilo que eu gostaria de partilhar, sentir-se-ia demasiado abafado nos meus parcos recursos de língua portuguesa. Nunca conseguiria decantar aqui todos os sucos que jorro a cada dia. Talvez a gramagem do filtro da censura interior seja demasiado elevada. Ou então, talvez existam sensações, que apenas eu consiga absorver. A tentativa de as reproduzir é por isso, apenas um exercício de recreio, não havendo qualquer esperança objectiva que alguém as consiga verdadeiramente interiorizar.
Esta manhã quando me aproximava do aeroporto o taxista perguntou com voz de madrugada: “T1?”. Eu respondi com energia moderada: “T2”. Há medida que o carro procurava lugar para travar definitivamente, dei por mim a estranhar o pouquíssimo alarido em volta do terminal. As minhas suspeitas aumentaram quando o taxista diz “acho que é aqui”. Acertei as contas com o sujeito, passei as portas automáticas e encarei o monitor das partidas. O meu voo não se encontrava lá. Fui ver o que estava escrito no comprovativo do bilhete electrónico e não havia qualquer margem para dúvidas: T1. Sei perfeitamente o que me conduziu ao T2. Pareceu-me ouvir os altifalantes daquele terminal anunciar: Ladies and gentlemens João is back. Fiz uma pequena vénia aquelas paredes e dei caminho aos meus passos.
Já estive em muitos terminais de aeroporto. Poderia contar as vivências de todos eles com excepção do T2. A sua história nunca caberia aqui. Afinal de contas, é de vida que falo...Revi-me enquanto João, agora que sou Bulak. O mesmo pulsar nervoso e inquieto, mas um sangue muito mais fluído e preenchido...ou não fosse o mundo capaz de nos moldar...e de podermos ser felizes...

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Luz amarela

Sábado passado estaquei à conversa diante de uma maré a subir. Por vezes pergunto-me a razão de debater determinados assuntos. É claro que todos os assuntos são válidos para o debate de ideias, mas quando se está perante alguém, que sabemos concordar a 100% com a nossa opinião, a verdade é que não se aprende nada de novo. Apenas se reforça a crença inicial. Mas o que importa a este texto é a temática de tal conversa: a luz amarela. Eu não a consigo compreender. Nos semáforos toda a gente percebe que a luz amarela funciona como um aviso à navegação, de que nos próximos segundos a luz passará a vermelha. O que eu não consigo efectivamente perceber é a constância da luz amarela nas nossas vidas. Como se a vida fosse uma viagem nocturna iluminada apenas por sinais intermitentes.
Muitas vezes penso se a intermitência da vida, não advirá de uma secreta vã incerteza da morte. A esperança no final feliz é seguramente a última coisa a desaparecer da nossa existência. Ter como dado adquirido que a morte acontece a cada instante, a cada respirar e a cada segundo, talvez seja a melhor coisa que podemos fazer a nós próprios. Para assim vivermos mais certos das nossas certezas, sejam elas de cor verde ou vermelha.
O principal problema da luz amarela e das nossas incertezas é o que as mesmas provocam nos outros. Toda a gente quer estar a verde ou a vermelho e muitas vezes esse estado está dependente das decisões dos outros. Assustador mas incrivelmente assim. O mais criminoso de tudo isto não chega a ser o facto da indecisão em si, mas a total ausência de comunicação que muitas vezes ocorre durante o processo decisório.
Eu também tenho os meus períodos amarelos e também não vivo imune às indecisões dos outros. Sei que todas estas indefinições fazem também parte do pacote. Mas por vezes dá vontade de ser como a Alice do filme Closer...

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Apalpar a fruta

Não tenho uma relação muito próxima com a fruta. A minha realização alimentar não advém de um pêssego maduro ou de uma talhada de melão. Como fruta basicamente porque sei que me faz bem. Tenho naturalmente algumas preferências como as cerejas, as amoras e os figos. Em igual medida tenho certos ódios como o kiwi, a papaia e a melancia (aqui utilizo o singular para não ficar já mal disposto). Ser Humano que sou, tenho também os meus momentos em que como tudo o que mexe. É obvio que continuo a falar de fruta apesar de a mesma não possuir aparelho locomotor. Gosto particularmente de comprar fruta na berma da estrada. Fico sempre com a impressão que a fruta foi apanhada naquele instante, mesmo tratando-se de mangas ou ananases, frutas muito típicas da nossa agricultura. Infelizmente não é todos os dias que me cruzo com essas frutarias ambulantes. Tenho por isso de me resignar na maioria das vezes às idas ao hipermercado. Escusado será dizer que não percebo nada no que toca a escolher fruta. Na verdade, aquilo que mais me agrada na poeirenta berma da estrada, é o facto de escolherem a fruta por mim. Nos brancos corredores das grandes superfícies não se encontra esse tipo de atenção. Da mesma forma que pago para me passarem a roupa a ferro, não diria que não no que toca a escolherem a fruta por mim. Não me peçam para apalpar a fruta pois é coisa que nunca irei fazer. É uma competência que não tenho e que não me envergonha por aí além. A minha estratégia passa por isso por confiar no olhar. Não são raras as vezes que me encontro parado a olhar para a fruta como se olhasse para um problema matemático. Invariavelmente, todas as peças de fruta em que pego, acabam dentro do saco. As minhas papilas gustativas farão mais tarde o seu relatório sobre as escolhas efectuadas.
Comecei recentemente a utilizar um critério na escolha da fruta: os autocolantes. Já se terão apercebido que muitas frutas trazem um autocolante na casca. Os autocolantes têm quase sempre a mesma dimensão, variando apenas as cores e o que lá está escrito. Pode ser a marca, o país de origem ou uma mensagem saudável. Depois de várias noites em branco a tentar perceber o porquê de tais autocolantes, cheguei finalmente a uma conclusão. A primeira coisa que pensei foi o seu propósito. Este teria de ser algo de necessariamente bom pra nós, valendo por isso a pena, correr-se o risco de alguém distraidamente engolir o autocolante. A partir deste ponto foi-me bastante fácil perceber o resto. O que o autocolante faz é simplesmente tapar o buraco da minhoca para que esta não possa sair. E toda a gente sabe que a fruta que tem bicho é a melhor de todas...

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Adoro cães

Já fui acusado por diversas vezes de não gostar de cães. Nada poderia ser mais falso, mas a verdade, é que não há grande coisa que eu possa fazer para contrariar tais acusações. Nunca irão acreditar que eu também gosto muito de cães. Quem profere tais injúrias são naturalmente pessoas que adoram cães e que não conseguem perceber que eu prefira gatos. Como se já não bastasse os cães andarem sempre a correr atrás dos gatos, há agora esta espécie de caçada em campo aberto aos que como eu, gostam mais de gatos.
Cada qual lá terá as suas razões para justificar as suas preferências. Há até quem diga que, a opção por gatos ou cães, tem reflexo nas escolhas que fazemos para as nossas relações. Mas há também quem diga que o José Castelo Branco é na verdade um homem. Cada um acredita naquilo que quiser. Admitindo por momentos que a preferência por gatos diz muito sobre o género de pessoas que gosto, fará algum sentido perceber alguns traços de personalidade dos gatos com quem vivi. O Buck Rogers entrava em lutas constantes com os rivais vizinhos. Desaparecia dias consecutivos que obrigavam os meus irmãos a constantes operações de busca e salvamento. Nunca se gastou tanto mercurocromo lá em casa como nesse tempo. O Tobias (baptizado em pequeno) decidiu num dia da sua juventude soltar-se da segurança do abraço do dono e enfiar-se debaixo do carro que saía da caragem. O resultado desse gesto foi um olho perdido. Nunca até então um nome tinha feito tanto sentido. O Libório gostava de observar o mundo de uma perspectiva superior. Não era raro encontrá-lo em cima no parapeito das janelas, no telhado do vizinho ou no ramo mais alto da árvore do jardim. A sobriedade dos seus movimentos era arrepiante. Nunca tocaram tantas vezes à nossa campaínha como nessa altura. O Turista e o Xico representavam perfeitamente o chefe e o empregado. O primeiro era um verdadeiro ditador e chegava ao cúmulo de ter de ser o segundo a miar, para nos dizer que o primeiro tinha de ir à rua fazer as suas necessidades. Nunca se partiram tantos bibelot como nesse tempo.
E posto isto em forma de escrita, talvez esteja na hora de comprar um cão...

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O trinómio da saudade

A saudade é algo incrivelmente fascinante. Convivo diariamente com este sentimento, mas nada sei a seu respeito. Já o convidei várias vezes a sentar-se comigo para falarmos um pouco, mas a sua postura é sempre a mesma. Faz o que tem a fazer com profissionalismo e depois esfuma-se até nova visita. Não existe ferrolho capaz de deter os seus intentos. Somos uma esponja indefesa que absorve todas as suas vontades.
Não sei qual é a pior face das saudades. Os mais orgânicos acusarão as saudades passadas como sendo o seu rosto mais assustador. A mocidade que já não volta, os mortos enterrados, as grandes aventuras vividas. Os mais obstinados declararão as saudades presentes como a mais vil forma de expressão. A consciência imediata do irrepetível, da perda dali a uns momentos, da nostalgia que em seguida se abaterá. Os mais eloquentes condenarão as saudades futuras ao mais terrível castigo. Aquilo que não se viverá, as pessoas que desaparecerão, as conquistas que não se partilharão.
Talvez a saudade seja o resultado deste trinómio. De uma coisa tenho a certeza absoluta. A saudade tem um valor constante para cada indivíduo. Se não conseguimos todos correr os 50 metros abaixo dos 10 segundos porque haveríamos todos de sentir o mesmo nível de saudade? Se a saudade tem então um valor constante, aquilo que tem de variar são os seus três termos: passado, presente e futuro. Há tantas formas de chegar a Roma como para chegar a um resultado. Se a minha constante de saudade fosse por exemplo 8 e tendo em conta ser o resultado do trinómio, tal 8 poderia ser obtido da seguinte forma: 8 saudades=3 (saudades passadas)+1 (saudades presentes)+4 (saudades futuras). A partir do momento em que as aulas de matemática me ensinaram os números inteiros, tudo se tornou mais curioso. Olhando para a expressão 8=17-3-6 somos tentados de uma forma infantil a dizer que estamos perante duas subtracções. Mais interessante é ver o 17 como um número positivo e o 3 e o 6 como números negativos. Se virmos a saudade sobre este prisma facilmente perceberemos que pouco interessa o tipo de saudades. Se passadas, presentes ou futuras. O verdadeiramente importante é o sinal associado a cada uma a cada instante. Daí se percebe o quanto se pode ser feliz apesar de tanta saudade...

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A culpa é do Oscar senhores jurados

No princípio do ano corrente tomei uma importante resolução "Ao duodécimo dia do mês de Agosto irei completar o meu perfil no Facebook". O conteúdo daquilo que poderia escrever no perfil, é na verdade totalmente acessório à missão de tal rede social. Há muitos internautas que se referem ao Facebook como "Livro de caras". Esta tradução parece-me estar polvilhada de uma certa zombaria, mas a verdade é que, com ou sem chistes e motejos, a tradução acabaria por ser aceite nas aferições do antigo 5º ano. Se me fosse permitida uma tradução livre, cuja finalidade fosse, apenas e só, uma tradução espontânea e desinteressada, eu faria naturalmente uma tradução com base na leitura do conceito em si e na minha opinião sobre tal fenómeno. Facebook seria deste modo traduzido como "Álbum de fotografias boas à moda da Melanie".
A palavra "álbum" não acrescenta qualquer valor à tradução já existente. Interessa por isso dissecar os restantes componentes da tradução. "Fotografias boas" - As máquinas fotográficas digitais trouxeram consigo um conceito originário dos ginásios: as repetições. É universalmente aceite que são necessárias repetições de alguns exercícios físicos, para que o glúteo ou o abdominal, ganhem a forma pretendida. O mesmo se passa quase de forma inconsciente com as fotografias. São inúmeras as repetições fotográficas até que se obtenha o olho aberto, o perfil favorável ou o sorriso perfeito. O Facebook é por isso um repositório visual do nosso melhor. Pouco importa se tratando da trivialidade do dia-a-dia ou de um empreedimento maior. O importante é que é sempre o nosso melhor. "à moda da Melanie" - Para além da estrutura dos álbuns serem de uma originalidade invejável, o que é mais fascinante no trabalho desta minha amiga, é a criatividade imposta nas referências que estão associadas a cada fotografia. Não se trata de colocar uma simples referência à data ou local em que foram tiradas. Muito menos a identificação das pessoas que compõem a fotografia. São pequenas descrições e apontamentos que pulsam de vida. Tudo num equilíbrio maravilhoso que empolga quem manuseia semelhante álbum. Por vezes chega a parecer que as fotografias é que ilustram as palavras que estão escritas.
Animado por esta minha interpretação, decidi-me pela data de hoje como o grande dia. O dia em que eu iria colocar no Facebook as minhas melhores fotografias acompanhadas por comentários não menos virtuosos. Faltam menos de 4 horas para o dia terminar, e posso já sem qualquer dúvida afirmar, que hoje não o poderei fazer. Sei bem a tristeza que neste momento se abate em todos vós. Não quero arranjar qualquer bode espiatório para este terrível incidente. Posso, e devo, falar apenas a verdade. A culpa é do Oscar senhores jurados. Este ilustre indivíduo possui o meu disco externo no qual se encontram todas as minhas fotografias. Tal personagem, vá-se lá saber porquê, enfiou na cabeça que em tal objecto, poderia também encontrar um bocadinho do melhor de si próprio. Inocente como sou, emprestei-lhe tal objecto.
O destino troça realmente de nós. A letra da minha resolução do princípio do ano vence hoje, e amanhã mesmo, ser-me-á entregue o disco externo. Amanhã é efectivamente tarde de mais por que uma nova resolução princípia com o novo dia. "A partir do tredécimo dia de Agosto irás gravar todas as fotografias em duplicado para poderes actualizar o melhor de ti a qualquer momento".
E no fim de contas o destino dá ares de importância com mais um volta extraordinária nesta história fantástica. O que a gente não faz para se sentir enquadrado na sociedade...

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Huge discount

Um dia a idade chegou. O espelho testemunhou a existência de crateras no couro cabeludo e a minha caixa do correio foi sacudida pela imagem aqui presente. Perante estas occorências há na verdade pouca coisa a fazer. Posso sempre entristecer-me pela primeira e alegrar-me pela segunda. E é exactamente isso que vou fazer. Pronto, missão cumprida. Já estou triste e alegre. Mas como a tristeza não paga o serviço da minha mulher-a-dias (leia-se, os anos de vida que perco a arrumar a casa), irei apenas celebrar a enorme alegria que a segunda ocorrência me provocou.
Não há nada melhor do que lembrarem-se de nós. Saber que somos objecto de afetividade e dedicação. Senti o coração transbordar de alegria quando vi a frase que acompanhava a imagem.
Hey, joao.sousa, 80% off, Final Sale. Especially during ponti exchange. O meu nome. Tudo aquilo apenas para mim. Este gesto comoveu-me imensamente. Mas a profundidade desta imagem catalizou a minha alegria para um nível até aqui desconhecido. Não sei o que mais me tocou neste cocktail de emoções. Se o polegar em riste, se o cabelo penteado para a frente. Se a referência a comprimidos para profissionais, se o fio por dentro da camisa. Se a expressão facial do actor, se a tetra utilização da expressão huge discount.
A calvície é realmente algo muito vil. Já não basta o mal que provoca só por si, como a maioria dos tratamentos para a combater, têm como efeito secundário (será primário??) alterações nos níveis da testosterona. O huge discount é sobejamente atrativo, mas creio que a velha máxima, É dos carecas que elas gostam mais, deverá imperar. De contrário ainda me arrsicaria a receber diariamente enourmous, great, big, large, wide e vast discounts. Acho que isto não me alegraria segunda vez...

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Quando o tamanho faz a diferença

O tamanho faz a diferença? Esta é uma questão que tem sido muito discutida ao longo dos tempos. Em determinados propósitos, as respostas dadas podem até pecar de honestidade. Mas de uma forma geral consegue-se alcançar maioria absoluta para a maioria das questões: os laterais de uma equipa de futebol devem ser altos, a mala de um carro deve ser grande, os bolinhos de bacalhau devem ser pequenos.
O leite escolar é aqui substituído por um pão e uma banana. A azáfama em torno do pequeno- almoço é algo que só mesmo visto. A minha segunda aula do dia é dada a míudos de 7-8 anos e acontece imediatamente após a distribuição dos pães e das bananas. Chego sempre à sala no pico máximo do caos. Sacos de pão a explodirem como balões, cascas de banana pelo chão, copos de água entornados. Os primeiros minutos desta aula são sem dúvida alguma a tarefa mais extenue do dia. A ordem é a custo reposta e a aprendizagem finalmente pode começar.
A aula desta manhã foi no entanto diferente. Cheguei à sala e o pequeno almoço ainda não tinha sido distribuído. Principiei a aula e os alunos seguiram as minhas indicações. O pequeno-almoço chegou quando a aula já ía a meio. Os ânimos continuaram serenos pois o exercício que estavam a fazer era bastante cativante. Muito calmamente comecei a distribuir as bananas e os pães. A certa altura alguns alunos vieram ter comigo com reclamações. Escusado será dizer que a nossa comunicação é basicamente feita por gestos. Algumas bananas estavam pisadas ou maduras demais ou com a casca rasgada.
Não percebi muito bem qual era o meu papel naquele momento, pois até hoje, ainda não tinha passado por tal situação. Deixei por isso serem os tais alunos a liderarem as operações. Inclinaram-se para a porta e sairam da sala. No chão do corredor encontravam-se nesse momento dezenas de cachos de bananas. Os alunos agacharam-se, pousaram a banana indesejada e preparam-se para arrancar uma nova. O corredor encontrava-se vazio e eu fiquei sem saber até que ponto é que eles poderiam ou não fazer aquilo. Com um movimento rápido atirei-os para dentro da sala e tratei eu de arrancar as bananas. A ser alguém apanhado em flagrante delito, que fosse eu. Distribuo as bananas pelos queixosos e tento proseguir a aula com o caos habitual já instalado.
Um aluno chama pelo meu nome e manisfesta o seu desagrado face à banana que lhe calhou na sorte. Tomei a banana nas minhas mãos como se fosse um objecto raro e analisei-a atentamente. A mesma estava em perfeitas condições. Não havia absolutamente nada a apontar. Devolvi a banana ao remetente e o gongo soou. Dirigi-me ao aluno e tentei perceber qual era afinal o problema da banana. Num gesto só percebi o problema. Era demasiado pequena. As bananas da Madeira dificilmente conseguiriam ser exportadas para aqui. Pobreza e gourmet têm feitios bem diferentes...

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Prescrições de sorrisos

A propaganda chegou ao Bangladesh em forma de canetas. A fila indiana pareceu não ter fim. A cada segundo juntavam-se mais e mais crianças, todas na expectativa de conseguir uma caneta. As mães enfiavam os filhos à força na fila já composta, também elas na esperança, que a sorte bafejasse os seus rebentos. O mais interessante neste fenómeno é o facto de todas estas canetas terem sido distribuídas por um médico. O resultado de todas as visitas de informação médica, teve finalmente expressão. Não em prescrições, mas em caras felizes. Parece-me um saldo francamente positivo...
A manhã do primeiro dia de folga é ocupada a aprender críquete. Após alguns lançamentos e de um curto jogo de futebol, as actividades desportivas são interrompidas, pois nós temos de seguir para um casamento. As crianças são incentivadas a permanecer em campo, mas elas são as primeiras a querer ir embora. O sol é abrasador e os seus raios parecem incidir directamente nos seus estômagos vazios.
A história do casamento é de uma doçura tal, que provocaria certamente hiperglicemias, apenas pela sua audição. Fico-me por isso pelo final do dia e pelo passeio de barcaça por entre um lago parido pelas águas das chuvas. Os barcos que se cruzam dão motivo a acenos e a sorrisos. E a pés de dança também. E uma vez mais, regressamos carregados...

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Sala de aula

Ao quarto dia a música entrou na sala de aula e as gargalhadas ganharam vida para além dos véus. Já me dizem que as aulas são boas e ainda agora os conheci. Talvez noutra vida tenha sido um palhaço de circo ou uma marioneta itinerante, mas algo acontece nestas salas de aula que me desarma de quaisquer amarras. Como se ali encontrasse o meu verdadeiro chão, o meu lugar de conforto, o meu trampolim de realização.
Um local como este não cabe em qualquer livro de viagens. Eu não tenho engenho para descrever o vómito e o arrebatamento que por aqui se gladiam a cada cruzar de esquina. Apenas me limito a aspirar todas estas sensações e a estender a minha mão ao afago desta gente...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Vias remotas

"Quem és tu?" é talvez a interrogação que mais vezes coloco. A alguém que me é próximo, a alguém que me é estranho, a alguém que sou eu próprio. São incontáveis as vezes que toquei o âmago de todos nós. Mas a minha garganta teima em ficar seca apesar de impregnada de essências de gente. Como se nunca fosse suficente para mim. E a interrogação uma vez mais lançada pelo ar.
Não sei quão longe poderei ir neste meu intento de conhecer o fundo de todos nós. Talvez deva apenas alegrar-me e dar graças pelas pepitas de ouro que os ribeiros todos os dias me oferecem. Mas há um desassossego que rege a minha vontade. Algo que destrona a consciência da loucura deste empreendimento. Ninguém tem culpa dos seus sonhos e é com a descoberta do filão que sonho todos os dias.
Existem formas de conhecer uma pessoa por via remota. Sem podermos ver a transparência dos seus olhos, sem ouvirmos o som que vibra nas suas cordas vocais, sem tocar a maciez da sua pele, sem sentir o sabor da sua língua, sem inspirar os seus aromas identificativos. Sem ler as suas palavras, sem admirar as suas obras, sem experienciar os seus gestos. Nada consegue substituir estas formas de adquirir conhecimento. Creio no entanto que há uma via remota que pode ajudar a escavar esta imensidão de areia que nos separa do mais belo tesouro. Essa via remota nada mais é que o complexo universo das influências. Por isso é que leio os livros dos outros, experimento a comida dos outros, vejo os filmes dos outros, visito os lugares dos outros, ouço a música dos outros.
O primeiro filme do Sexo e a Cidade tem uma determinada cena em que me revejo de uma forma imensurável. A Carrie Bradshaw está sentada em frente ao seu computador. No monitor está escrita apenas uma simples palavra. Os gestos que se seguem são de uma simplicidade e profundidade totalmente desarmante. E mais não digo. Para me conhecerem ou apenas porque sim...

terça-feira, 1 de junho de 2010

Dia do Adulto

Não sei quantas aventuras vivi naquele quarto. Fiz de árbitro no braço de ferro, empatei na minha primeira partida de xadrez, vi os abajures do candeeiro a quebrarem-se sobre a cabeça do meu irmão. Perdi sempre a jogar poker, dei nomes de futebolistas aos berlindes, escrevi os primeiros recados de amor. Atirei legos com toda a força do meu braço, procurei países impossiveis no globo iluminado, fumei cigarros feitos de corda de sisal. Aprendi os primeiros acordes da guitarra, escondi-me debaixo da cama, queimei as formigas que se acumulavam no parapeito da janela. Esperei pelo Twin Peaks, borrifei com água os lencois na noites quentes de Verão, colei cromos nas cadernetas. Berrei para o quintal do Bruno, dormi no chão entre as duas camas, dei uma mija na cadeira da roupa. Gravei músicas da Radio Cidade, preguei pioneses coloridos no peão, guardei dentes debaixo da almofada. Fiz mil batalhas com os soldadinhos, enfiei gatos dentro dos lençois, pendurei posters de jogadores da NBA. Guardei tortas dancake na escrivaninha, apontei a fisga de grampos aos estores do vizinho, fiz os trabalhos de casa. Li as revistas do Conan o bárbaro, pus cruzes no totobola, ensaiei a leitura da comunhão solene. Disparei chumbos de uma pressão de ar, enchi inúmeros balões, plastifiquei os livros escolares. Enrolei rifas de papel vegetal, fiz meio ponto em bocados de talagarça, pilotei dezenas de carrinhos.A noite passada mal consegui dormi. O quarto não me reconhece. O espelho não consegue ver para além da minha barba, o chão estranha o peso do meu corpo, a janela admira-se por não ficar à altura do meu pescoço. São muitas as desconfianças que têm a meu respeito e não me dão um momento de sossego. O espelho finge que tomba, o chão range constantemente, a janela teima em abrir-se. Não consigo imaginar como será a noite de hoje, mas não estou nada optimista. O quarto teima em não acreditar que ainda sou a mesma criança que nele viveu tantas façanhas. Um quarto que foi o meu castelo, o meu palco, o meu esconderijo. Celebrarei o Dia da Criança mesmo à sua revelia. Hoje não irei lembrar a minha meninice. Irei sim reviver as crianças que encontrei há exactamente um ano atrás em Timor Leste. As crianças que sorriram no dia em que cheguei, as crianças que choraram no dia em que fui embora. Vou fazer a viagem a estas memórias de gargalhadas e de lágrimas. O tempo em que sendo adulto, voltei a ser criança. Quem sabe, no fim de ouvir esta história, talvez o quarto me deixe dormir...

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Momento de Glória

A minha aderência à Via Verde foi uma imposição da minha entidade patronal. Assim não há cá perdas de tempo, pois a produtividade é uma coisa muito séria. Poderia utilizar a Via Verde fora do contexto profissional, mas o que é facto, é que não o faço. Julgam-me um verdadeiro fundamentalista das portagens. O assunto vem à baila frequentemente e os meus interlocutores ficam sempre muito perturbados com os meus argumentos. É quase como um daqueles casos de constrangimento que por vezes nos acontecem. A imagem por exemplo de dois homens de barba rija a beijarem-se calorosamente em plena rua, provoca um certo incómodo a muita gente. O meu chocante argumento relativamente às portagens nada mais é do que "não perco qualquer tempo". Dentro das microcasas das portagens vive um coisa: pessoas. Gente exactamente igual a mim. Os diálogos mais extensos que normalmente se tem com os portageiros resumem-se a combinações de 3 frases: "Bom dia, tarde, noite", "Boa viagem", "Obrigado". Pontualmente poderá haver um "Bom Natal", "Não tem 50 cêntimos", "Como é que apanho a A8". Na sua generalidade, as conversas andam à volta disto.
Para além de outros disparates que por vezes me ocorrem dizer, há uma frase que acrescento sempre no final das conversas que tenho com os portageiros: "Bom trabalho". A reacção é sistematicamente a mesma: encaram-me com um olhar de agradecimento e eu presentei-os sempre com um sorriso e com uma piscadela de olho. Estas ditas paragens dão-me uma alegria imensa.
Hoje acordei a todo o vapor. Cheguei num ápice ao escritório, engoli o pequeno almoço e comecei a trabalhar a mil à hora. Falei com este, mandei mail aquele, telefonei a outro. Da parte da manhã estive praticamente ausente de qualquer assunto que não de trabalho. Estava tão concentrado que por vezes nem ouvia o que me estavam a dizer, quando o assunto não fosse o meu projecto. A minha cabeça estabelecia prioridades, tomava decisões, previa cenários. A determinada altura estou sentado com a minha chefe na sua secretária a fazer umas contas importantes, quando me parece ouvir o meu telefone fixo. Corri para o telefone mas não cheguei a tempo. Não me escusei de mandar uma rabecada ao meu colega do lado "- Então não me dizias que o era o meu telefone?". Regresso às contas e desta vez toca o telemóvel. Era o recepcionista do escritório. Eu estava para lá de Bagdad e não percebi nada do que ele me disse. Apenas fixei que estava alguém na recepção para falar comigo. Achei a situação estranhíssima pois eu não tinha agendado nada. Fui a correr até à recepção pois não tinha um segundo a perder. Ainda com a cabeça a fazer contas cheguei à recepção. A primeira coisa que vi foi um mensageiro de uma transportadora debruçado sobre o balcão. Pensei que ele talvez pudesse ter algo para me entregar, mas o recepcionista indicou-me uma outra pessoa. Avistei então alguém que se encontrava de pé e de braços cruzados. Dirigi-me a essa pessoa com a maior estranheza deste mundo "Tem a certeza que é comigo?". Quem me esperava era alguém que eu nunca tinha visto ou falado. Apenas alguém que eu sabia existir. Aos três minutos e quarenta segundos de conversa, a barreira do "você" já tinha ido à vida. Não falámos mais de cinco minutos. Esta paragem teve um efeito muito semelhante às paragens da portagem: se de manhã estive a todo o vapor, depois daquele momento de Glória, passei a estar em modo Houston, we've a take off .

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A fala do vilão

Hoje, enquanto lia as notícias do meu mundo, cruzei-me com uma frase perturbante. Amargo suspiro de cansaço? Vida ocupada por tempo indesejado? Saturação num mundo de entropia? Ou então nada disto. Afinal de contas, a minha falta de interpretação, sempre se refletiu em notas medianas a língua portuguesa. Não imagino as motivações de quem escreveu aquela frase. Nem sequer me atrevo a adivinhar se tal frase visaria alguém em concreto. A única coisa que sei é que não é nada comigo. Neste caso sou apenas um espectador atento às peças de teatro que cada um vive. Mas e se por acaso não fosse assim? Se no universo das vidas paralelas, fosse eu o objectivo daquela deixa? Que poderia eu fazer perante a força daquelas palavras? Estou a anos-luz de distância de perceber que cena foi ali representada. Anos-luz em termos da minha condição humana, pois se fosse a minha condição extraterreste, a distância de entendimento seria bem mais curta.
Seria então eu o vilão desta encenação, a razão de tal desabafo, a voz desafinada daquele canto. Esta seria a minha fala.

"Hoje a minha casa cheira a alfazema. É um aroma que conheço demasiado bem. Não posso dizer o mesmo dos teus cabelos, sabes? Por vezes reconheço gente do passado em corpos do presente. Fragâncias inesquecíveis de vida partilhada. Gostava de poder dizer-te o que me fez querer decorar o cheiro dos teus cabelos. Infelizmente não o consigo fazer. Eu próprio não o sei.
És apenas uma estranha para mim. Não sabes absolutamente nada a meu respeito. Da mesma forma que nada sei sobre ti. Algo no entanto me impele a fazer-te perguntas continuamente. Sei que já estás farta de tanto ponto de interrogação. Gostava de o poder evitar, mas é o meu sinal de pontuação preferido. Mas compreende que a minha curiosidade não és tu. O que me motiva é descobrir o meu caminho. E sinto que tenho de percorrer em ti parte desse caminho. Poderei estar errado como o estive tantas outras vezes. Mas o desnorte também faz parte da escolha da partida.
Recordo os nosso diálogos. Imagino os teus sorrisos sem sequer os ter visto. Tudo isso através das palavras que ao longo do tempo foste escrevendo. Também tu utilizaste o ponto de interrogação, lembras-te? Pensei que também estarias a fazer parte do teu caminho em mim. O que terá alterado o azimute da nossa rota? Terá sido algo que eu disse? Tenho ainda bem presente tudo o que te disse. Como folhas perenes a resistir à ventania. Não tens de ter medo daquilo que te disse. Muito menos de sentires qualquer espécie de obrigação. Os presentes dão-se, os presentes não se retribuem.
Eu sou assim, sabes? Não posso guardar as palavras. Já guardo os gestos em demasia. Nunca o poderia fazer com as palavras. Se o último suspiro viesse agora, ainda teria tanto para dizer a tanta gente. É incrível pensar nisso. Ainda tenho por dizer tantos amo, desculpa, parabéns, obrigado. Demasiados. E ao mesmo tempo já o faço tantas vezes. Vivo imensamente assim. Não imaginas o meu cordão afectivo. Talvez tu não saibas, mas um dia irás perceber, que o tempo é demasiado curto, para elogiarmos quem temos nas nossas vidas. Eu apenas te quis dar as boas-vindas ao grupo de pessoas que sempre me farão falta. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer vida paralela. Atravessar essa porta só te diz respeito a ti. E mesmo que não a atravesses, lançar-te-ei o meu melhor sorriso da soleira do meu mundo"

Nunca saberemos o que esta fala faria junto de quem forjou aquela frase. Tratando-se de um exercício de imaginação, cada qual que faça o seu epílogo.

Encontros na cidade

A forma como aquele olhar me fixava era perturbante. Naquele primeiro encontro apenas consegui articular um pensamento:
"- Quem será esta mulher?"
Uma estranha sensação de familiaridade invadia o meu espírito. Senti que a conhecia. De outro tempo, de outro lugar. Como se ela sempre tivesse caminhado junto de mim, mas até então, eu nunca a tivesse realizado. Seria este o meu destino? As linhas traçadas da minha mão estariam finalmente a revelar-se?
A cumplicidade daquele primeiro olhar encarcerou-me de imediato. A partir desse momento comecei a encontrá-la por todo o lado. O mundo parecia inclinado para os nossos encontros. Tudo em volta acontecia sempre de forma distinta. Chuva, buzina, polén, passeio. Riso, corrida, frio, pão. Fila, gravata, barba, obras. Variáveis infinitas a contrastar com a certeza daquele olhar de azul indecifrável. Algo no meu cérebro me despertava do torpor rotineiro da minha vida. Era sempre aquela mulher. Mais e mais ela.
Comecei a conhecer a minha vida a partir dos nossos fugazes encontros. Nunca soube o seu nome, nunca ouvi o som da sua voz. Apenas observei a minha vida projectada no brilho da sua presença. A espaços vencia a timidez e acenava-lhe um cumprimento. A sua expressão mantinha-se sempre impassível e enigmática. Como se a nossa relação estivesse talhada ao silêncio da intimidade. Não compatível com palavras. Éramos apenas algo em comum. Passageiros do mesmo voo. Espectadores do mesmo filme. Clientes do mesmo café.
Apercebi-me da sua ausência assim que saí de casa. Procurei-a por todos os locais em que tínhamos vivido a nossa história mas não a encontrei. Aventurei-me por ruas da cidade que desconhia numa vã expectativa de a ver novamente. Nunca mais a vi. A mulher de quem nunca soube o nome ou ouvi a voz. Sei apenas que tivemos uma história de olhares partilhados nas ruas da cidade. Eu um andarilho sem rumo, ela uma fotografia de um outdoor.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A cultura do in

Há algo que não me sai da cabeça desde que acordei. Não, não estou a falar do cabelo. Ainda o despertador não tinha dado sinais de vida, e já eu estava com a mente ocupada. Já são 5 da tarde e continuo a pensar na mesma coisa. Quero deixar de pensar nisto neste preciso momento em que estou a escrever este texto. Ao longo do dia tenho tentado diferentes abordagens para afastar-me deste pensamento. Concentrar-me numa tarefa, descascar uma tangerina, falar continuamente...nada funcionou até agora. Só me falta realmente tentar uma coisa. Olhar para este pensamento de uma forma o mais negativa possível. Ver as suas inconsistências, inverosimilhanças, imperfeições. A cultura do "in" (ou do "im" caso as letras p e b estejam presentes). O Homem é realmente muito bom no que toca a colocar defeitos. Será que quando um leão come bifes de gazela se queixa de a carne estar mal passada? Porque buscamos continuamente as falhas? Será esse o caminho a seguir para podermos amenizar a pressão arterial da alma? Eu estou mesmo convencido que não, mas de qualquer forma vou experimentar e é já: João não penses mais nisso. Não estás a ver que...Já para não falar de...E não te esqueças que...E ainda pra mais...
Ufa!! Já me sinto imensamente melhor! Que alívio. Espera. Parece que ouvi qualquer coisa! Será possível? É mesmo. O pensamento está de volta. Merda pra isto! Não há nada a fazer. É realmente inevitável. Mas inevitável também começa por "in"!! Deve ser uma cultura paralela...

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Muitas mais perguntas haveria a fazer, mas a resposta seria sempre a mesma

Por que me preocupo tanto? Por que acho a água da piscina sempre fria? Por que tenho câimbras no pescoço? Por que tenho de continuar a negar o windsurf? Por que me custa tanto levantar? Por que tenho de ser eu a organizar sempre tudo? Por que sou capaz de ouvir a mesma canção repetidamente? Por que mastigo mais com o lado esquerdo? Por que vejo sempre o Nothing Hill? Por que desisto de correr tão facilmente. Por que continuo a não gostar de queijo? Por que digo tantos palavrões a jogar futebol? Por que me chamam velha ranhosa? Por que tenho as pernas tão tortas? Por que sou tão impaciente? Por que estou constantemente com o dedo no nariz? Por que quero ser sempre o último a falar? Por que corto a cebola em pedaços pequeninos? Por que passeio pela casa enquanto lavo os dentes? Por que nunca vejo a pressão dos pneus? Por que leio tantas vezes as coisas que escrevo? Por que nunca faço alongamentos? Por que durmo tão mal em hoteis? Por que comprei uns sapatos e só os usei uma vez? Por que adoro o cheiro dos gatos? Por que como sempre bacalhau no Restaurante Campino? Porque não tenho jeito para estacionar? Por que preciso de estar sozinho? Por que gosto tanto de azul? Por que fecho os olhos sempre que canto um fado? Por que me recordo sempre dos meus sonhos? Por que passo tanto tempo a matutar? Por que não tenho uma barba uniforme? Por que me entusiasmo tanto? Por que lido tão mal com injustiças? Por que não me atraso? Por que estou a escrever isto numa sexta-feira à noite? Por que não me deito no centro da cama? Por que nunca resisto a uma taça de serradura? Por que sei de cor músicas do Marco Paulo? Por que quero mudar o mundo? Por que não ponho açucar no café? Por que vou sempre à casa de banho a meio da noite? Por que tenho tantas saudades do futuro? Por que nunca andei à porrada? Por que gosto tanto de dramas?Por que é que o único livro que li mais de uma vez é o Principezinho? Por que me dou tanto?

Por que de outra forma não seria eu.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Duas caixas

A caixa de entrada do meu telemóvel encontra-se neste preciso momento com 168 mensagens. A mais antiga data de 26 de Abril de 2010. Certamente que desde esse dia muitas terão sido as mensagens recebidas que foram apagadas de imediato. O número de mensagens actual na caixa de entrada não reflecte por isso, o total de mensagens recebidas nos últimos 17 dias. Os conteúdos das mesmas são extremamente variados: bolas de queijo flamengo, resultado do Barcelona-Inter, alteração de planos de última hora, confirmação de carregamento, convites para tomar café...
Junto à janela do meu quarto tenho uma caixa. Não me recordo da última vez que a abri. Está simplesmente sentada no soalho como outra qualquer peça do mobiliário. Servindo por vezes até, como depositário de uma peça de roupa usada. Dentro dessa caixa acumulam-se muitas coisas distintas. Mas de todos os objectos que lá podemos encontrar há uns em especial que se destacam em termos de presença: cartas. De amigo, de amor. Escritas a tinta verde ou sem o carimbo dos correios. Em língua estrangeira ou com corações desenhados. Salpicadas de café ou com palavras que requerem hífen.
As sms são cada vez mais o veículo número um de comunicação da palavra escrita. A minha caixa do correio hoje em dia alimenta-se a folhetos de publicidade, contas para pagar e actas das reuniões do condomínio. A meu ver, uma dieta demasiado pobre. Mas são estas as recomendações dos nutricionistas de hoje em dia. Meia dúzia de sms diários e fica cumprida a pirâmide de alimentos.
Acabei de eliminar as 168 mensagens que tinha. É algo que faço com relativa frequência. Existe sempre uma ligeira hesitação inicial, mas nunca o deixo de fazer. Não me posso prender às mesmas, por mais alegria que elas me tenham dado. Sei que raramente voltaria a elas. Assim como raramente volto à minha torre do tombo. Apesar de tudo esta caixa acompanha-me sempre, pois afinal de contas é lá que vivem tantas palavras que requerem hífen...

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Dias de clausura e liberdade

Senti-me imediatamente melhor assim que o meu pé esquerdo tocou o passeio. Busquei por entre as fachadas dos prédios o azul marinho que nesse dia fazia as vezes de céu. O vento frio do anoitecer definiu um sorriso nos meus lábios e recuperei o passo decidido que parecia haver perdido. Não procurava um local corpóreo. Procurava apenas o etéreo sabor da liberdade. Antes de sair daquela casa, sentia-me como uma gaivota perdida. Como se o perigo no mar me obrigasse à clausura de ficar em terra. Enquanto alguém tomava banho cruzei-me com 2 livros. Através das definições de liberdade de Gandhi e Rousseau e, da dramática expressão de um jovem alemão capturada numa fotografia a preto e branco, encontrei o a porta da saída. Mal me justifiquei por me ter ido embora. A justificação seria sempre demasiado confusa mas certamente que andaria nas redondezas do Fado sagitário: "Se me queres como sou não me queiras prisioneiro..."
Apanhei-me num salão de dança, assim que o dia a seguir chegou. Concentrei-me nos passos e nas indicações das bailarinas experientes. Por mais que tentasse não havia maneira de acertar nos tempos que a música pedia. Ainda noutro dia me tinham perguntado se eu tinha andado nas danças de salão. Na altura encarei isso como um elogio. Estou certo que tinha sido um elogio. Mas nesta tarde parecia pregado ao chão. A mesma sensação da noite anterior. Olhei os outros pares a rodopiar e inquiri as minhas companheiras sobre a nossa pobre actuação. Todas me mandavam estar simplesmente calado. Sosseguei a voz e tudo pareceu mais fácil. Cheguei a fechar os olhos e no abraço de uma mulher encontrei novamente asas de liberdade. A espaço, mas sempre liberdade. Fui para casa a pensar numa frase que ouvi numa noite: Tentamos conversar mas não resultou, até que começamos apenas a falar e tudo correu melhor.
Ao terceiro dia, fui molhar os pés ao oceano. Ofereci um afago a um cachorro em jeito de presente pelos seus já sete meses de vida. Pessoas que não conhecia deram-me um colete azul para vestir. Sentei-me nervosamente na areia à espera de uma chance para me estrear naquela modalidade. As minhas primeiras intervenções foram totalmente reféns de movimento, mas fui sempre agraciado com sorrisos e mais motivação. Ganhei confiança e os pés começaram a sair do chão. Corri com toda a minha velocidade e alguém decidiu arriscar o disco na minha direcção. Não permiti que o vento me tirasse a oportunidade e lancei-me pelo ar. Agarrei o disco como se fosse a coisa mais preciosa que alguma vez tinha tocado. Assim que aterrei no chão saudaram-me efusivamente pelo meu primeiro ponto. Com excepção de mim, todos concordavam que eu estava na área de marcação. E na liberdade da decisão deles, encontrei novamente a minha.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Três conversas ficcionadas que poderiam muito bem ser verdade

Rapariga 1 - Hoje estou piursa.
Amigo - Mas o que é que passou?
Rapariga 1 - Acreditas que ele não me diz nada desde domingo?
Amigo - É pá, mas hoje ainda só é terça-feira!
Rapariga 1 - Eu fui lanchar a casa dele no domingo e desde então que não sei mais nada.
Amigo - Desculpa? Foste lanchar a casa dele? Sozinha?
Rapariga 1 - Sim.
Amigo - Espera! Queres contar-me mais alguma coisa?
Rapariga 1 - Não se passou nada. Parece que não me conheces.
Amigo - Tu só o conheces há uns dias e vais assim a casa dele sozinha?
Rapariga 1 - Não te estou a acompanhar. Qual é o mal?
Amigo - Mal não tem nenhum, mas acho que acabaste de dar um tiro no pé.
Rapariga 1 - Tiro no pé? Que é que estás para aí a dizer??
Amigo - Basicamente como tu aceitaste ir a casa dele, é como se tivesses dito que estavas disponível para a acção.
Rapariga 1 - Estás a gozar!!! Achas que foi isso??
Amigo - Claro que foi. E como tu nada, ele agora não está para andar mais atrás de ti.
Rapariga 1 - Não posso acreditar. Vocês são todos assim?
Amigo - A grande maioria sim.
Rapariga 1 - Eu não acho normal


Amigo - Então como é que foi na sexta?
Rapariga 2 - Só te conto se prometeres não me partir a cabeça?
Amigo - Deixa-te lá de parvoíces e desembucha.
Rapariga 2 - Enrolei-me com aquele gajo.
Amigo - Tás a falar a sério? Oh pá...
Rapariga 2 - Tinha que acontecer. Era um capricho.
Amigo - Capricho são aqueles acepipes com pernas de carangueijo.
Rapariga 2 - Sabes como eu sou. Quando meto uma coisa na cabeça...
Amigo - E agora?
Rapariga 2 - Eu acho que ele atrofiou das ideias.
Amigo - Atrofiou? Como assim?
Rapariga 2 - Antes do que se passou nós tinhamos combinado ir passear no sábado.
Amigo - E como é que foi?
Rapariga 2 - Não aconteceu! Ele não me disse nada! Acabei por vê-lo à noite mas com o resto da malta.
Amigo - Sempre é alguma coisa!
Rapariga 2 - Estás parvo ou fazes-te?? Ele mora sozinho, ok? Depois do que se passou na sexta-feira seria normal ele dizer-me para ir a casa dele no sábado.
Amigo - Pois...
Rapariga 2 - Pois?? É isso que tens para dizer? Sabes muito bem como é que vocês são. Para quê ficar pelo aperitivo se podes ter o prato todo?
Amigo - Sim, lá isso é verdade...
Rapariga 2 - Eu não acho normal.


Amigo - E então? Estás ansiosa pelo encontro?
Rapariga 3 - Nem sei que te diga.
Amigo - Não te preocupes, pois vocês já se conhecem.
Rapariga 3 - Já nos conhecemos?? Nunca nos vimos!
Amigo - Está bem, mas têm falado milhões pela internet.
Rapariga 3 - Tenho muito medo disto, sabes?
Amigo - Mas porquê? Não há razão para isso.
Rapariga 3 - Acho que vai ser muito estranho estar pela primeira vez com uma pessoa de quem já sei tanto mas que nunca vi.
Amigo - Que disparate. Vocês efectivamente já se viram. Apenas falta a terceira dimensão.
Rapariga 3 - Ando mesmo nervosa com esta cena. Sabes que as minhas relações anteriores são diametralmente opostas a esta.
Amigo - Por isso é que deram no que deram. Agora estás a erguer uma coisa com base em muitos pilares distintos.
Rapariga 3 - Sabes que sou uma rapariga de acção...
Amigo - Tu, o Chuck Norris e o Rambo!!
Rapariga 3 - Eu não sei se tenho perfil para isto. Ele lá, eu cá...
Amigo - É pá calma caramba. Aproveita o que estás a viver e depois pensas nisso.
Rapariga 3 - Mas eu nunca o vi.
Amigo - Outra vez essa conversa? Diz isso a um cego.
Rapariga 3 - Eu não acho normal.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Os famosos da fama

Sei quem tenha lido um enciclopédia enquanto sentado na retrete. Eu pertenço ao lote de pessoas que também gosta de ler enquanto espera que o corpo arrume a casa. Creio que já decorei todos os ingredientes da pasta dos dentes e da espuma de barbear. Afinal de contas já foram várias as vezes em que não me fiz acompanhar de uma leitura a preceito. O que mais gosto de ler são as revistas ditas cor-de-rosa. Acho que combinam muito bem com o papel higiénico de dupla folha com aroma a flores do campo. Sim, por que perfume no rabinho é essencial, não vá alguém lá enfiar o nariz. A própria expressão a curiosidade matou o gato foi o mote para o papel higiénico começar a ser perfumado. Depois deste desvio literalmente de caca, vou voltar a centrar este texto naquilo que realmente importa.
Os artigos das revistas cor-de-rosa que mais me entusiasmam são sem dúvida alguma os que visam os "famosos da fama". Os famosos são os actores, músicos, apresentadores...enfim, todos aqueles que têm efectivamente um trabalho que de alguma forma entretem a generalidade das pessoas. Alguns são até ídolos dos mais novos ou companhia dos mais velhos. Os "famosos da fama" são as pessoas que comentam a vida dos famosos. Eu simplesmente adoro-os. Muito mais que o papel higiénico de dupla folha com aroma a flores do campo. Nada me diverte tanto como os seus comentários a respeito da vida dos famosos. Não é a performance laboral dos famosos que é posta em causa, mas sim as suas opções de vida, sejam elas um beijo ardente numa noite de copos ou a participação no evento X, Y ou Z. Podem acusar-me de dizer que esta mordacidade não tem problema algum e de que há pessoas realmente interessadas em saber o sexo dos anjos. Eu até vendo isso de barato, mas a constatação que a própria vida desses tertulianos também vende revistas, é algo que realmente não compreendo. Não há nada mais pobre do que ser famoso em segunda mão. Será que por eu estar a falar mal dos famosos da fama, também faz com que eu seja famoso. Neste caso já vai em terceira mão. Parece que já estou a ver os tabloides de amanhã: "João Ferreira obra a olhar para o Cláudio Ramos". É tão bom ser famoso.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Bom dia, boa tarde, boa noite

Bom dia passado. Bom dia botão em esquadria. Bom dia 5º ESQ. Bom dia lampreia. Bom dia provas globais. Bom dia para-vento. Bom dia Fernão Capelo Gaivota. Bom dia campo san siro. Bom dia primeiro beijo. Bom dia spectrum. Bom dia calças de fazenda. Bom dia senhor catequista. Bom dia santoínho. Bom dia leite escolar. Bom dia futebol aos sábados. Bom dia Orquidea Selvagem. Bom dia vinho syrah. Bom dia maré negra. Bom dia Barcelona. Bom dia torta dancake. Bom dia ping-pong. Bom dia bandolim. Bom dia Alice Pimenta. Bom dia reguadas. Bom dia volante do Honda Civic. Bom dia sede dos escuteiros. Bom dia interrail. Bom dia kanimambo. Boa dia Plato do dia. Bom dia restolho. Bom dia street fighter.

Boa tarde presente. Boa tarde vizinho. Boa tarde casa por limpar. Boa tarde sobrinhos. Boa tarde ipod. Boa tarde tikka masala. Boa tarde google. Boa tarde café e água com gás. Boa tarde olhos sorridentes. Boa tarde lonely planet. Boa tarde IRS. Boa tarde formação em voluntariado. Boa tarde corrida no estádio universitário. Boa tarde colega de trabalho. Boa tarde blog. Boa tarde amigos de Timor. Boa tarde 22 dias de férias. Boa tarde música do Toquio. Boa tarde Haruki Murakami. Boa tarde manta da Imaginarium. Boa tarde Vodka e Valium. Boa tarde cartão de compras Continente. Boa tarde A1. Boa tarde Um Homem Singular. Boa tarde doutora. Boa tarde Deolinda. Boa tarde gajedo. Boa tarde casamento do Né.

Boa noite futuro. Boa noite Bangladesh. Boa noite luto. Boa noite obras completas de Dostoievski.. Boa noite gato cinzento. Boa noite dores nos joelhos. Boa noite memórias. Boa noite paredes para pintar. Boa noite porto campeão. Boa noite plano poupança reforma. Boa noite ONG. Boa noite roupa apertada. Boa noite cabelo grisalho. Boa noite curso de escrita. Boa noite descongelar do frigorifico. Boa noite postais a enviar. Boa noite fotografia de Don Quixote. Boa noite filhos. Boa noite Jack Goes Boating. Boa noite posta à mirandesa na Gabriela. Boa noite fotografias por tirar. Boa noite Dom Pérignon. Boa noite regresso a casa. Boa noite expressão "no meu tempo". Boa noite a todos os bons dias, boas tardes e boas noites.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Quarto crescente

Um destes dias sentei-me num terceiro andar com um grupo de pessoas. Formamos um quarto minguante com as nossas cadeiras e cruzamos os olhares habituais. Alguns mais íntimos, outros mais impessoais. Afinal de contas, era apenas a oitava vez que ali estavamos. Já tinhamos discutido muitas coisas, mas nunca tinhamos falado sobre quem somos. O desafio dessa noite era a descoberta das motivações para o voluntariado. Para aperitivo, porque não principiar por nos apresentarmos? Declinei ser eu o primeiro e encaminhei a atenção para a pessoa que se encontrava à minha frente.
Algo me disse que poderia haver palavras encantadas à solta. Não é todos os dias que a lava de um vulcão eclode. Pedi uma caneta e deixei-me estar à escuta como um qualquer predador. A minha presa nada mais era que a genuidade vinda do âmago de cada um. Nunca fui uma pessoa de tirar apontamentos, mas naquela sala, o espaço em branco da minha folha rapidamente se encheu de tinta azul.
A festa das palavras começou de uma forma muito calma mas atingiu picos de emoção completamente impensáveis. Sorri com os relatos dos mais tranquilos, arrepiei-me com a disponibilidade dos mais nervosos. Aquilo que era para ser um aperitivo passou rapidamente para prato principal. Sorvi todas aquelas palavras e não me escusei de libertar um "que bonito" quando uma certa frase preencheu toda aquela sala: "Eu sou muitas coisas caramba. Sou os meus pais, sou a minha escola primária, sou o Fernando Pessoa e sou o Ary dos Santos"
Calhou-me a mim a tarefa de terminar a meia lua. E foi na disposição das cadeiras que encontrei o que dizer sobre mim. Os meus olhos tinham lido erradamente a fase da lua. Afinal de contas não estavamos sentados em quarto minguante, mas sim em quarto crescente...e é em quarto crescente que nos encontramos sempre que damos voz a quem somos...

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Pressa de Viver à Pressa

Tenho pressa de viver, mas não quero viver à pressa. Por vezes tenho tanta pressa de viver, que não o consigo fazer sem ser à pressa. E de pressa em pressa a vida corre sempre depressa.

Numa noite de filme visitei uma livraria. Encontrei um livro de culinária de nome Caril. Apesar de ter jantado bem, comecei rapidamente a salivar. As descrições e fotografias de tais iguarias eram por de mais sabororas. O resultado pós-saliva não poderia ter sido mais simples:

- "É para oferecer?"
- "Não. É mesmo para consumo próprio."

A minha dispensa tem agora um aroma a outra paragens. O colorau e a noz-moscada andam até com cara de amuados. Estavam habituados a ser dos primeiros a ir namorar as panelas e não é fácil ter de ceder o lugar a novatos como o cardamomo e a corcuma.
Ainda só fiz três cozinhados do livro. Tenho ambição de fazer todos os pratos. Aqueles que requerem carne de cabra velha posso sempre oferecer aos meus inimigos. A ter inimigos, que estejam sempre bem nutridos, ou não vá isso servir de desculpa para a pouca qualidade das suas malvadezas.
A família anda deliciada com estes cozinhados. Na verdade, alguns dos meus familiares, veriam com bons palatos a possibilidade de nos juntarmos todos os fins de semana à volta de uma panela a fumegar de sabor monhé.
Paralelamente aos fantásticos comentários do resultado da minha cozinha, ocorrem veementes críticas relacionadas com a manufatura: "não vejo o que acrescenta teres de começar por grelhar", "porque não utilizas apenas peitos em vez do frango inteiro", "fazer a marinada de manhã chega perfeitamente".
A pressa de comer à pressa...ou muito mais do que isso...

segunda-feira, 5 de abril de 2010

A ponte do desconhecido

Muitas vezes me questiono sobre a identidade dos meus leitores. Na verdade conheço alguns, não fossem eles meus familiares ou amigos de longa data. Creio no entanto que estes estão em minoria no grupo de pessoas que assiduamente visita este espaço. Pergunto-me por isso sobre quem realmente me acompanha.
É incrível pensar que existem estranhos que me visitam. Alguns deixam marcas da sua passagem em comentários mais ou menos pessoais. Outros apenas escutam as palavras que digo, mesmo sem nunca terem ouvido o tom da minha voz. Não sei o que cada um por aqui encontra e acima de tudo, não sei aquilo que cada um procura.
Eu efectivamente apenas acompanho um blog. Para além de amigo, o autor desse blog é uma pessoa por quem eu facilmente abdicaria a minha vida. Não por tudo o que me tem dado ao longo destes já muitos anos de convivência, mas acima de tudo, por ser alguém que admiro profundamente. Revejo-me, divirto-me e questiono-me com tudo aquilo que ele escreve. Estas poderiam ser razões mais do que suficientes para eu acompanhar as coisas que ele vai dizendo. Porém, a razão principal para eu o seguir neste meio de expressão, é o prazer do peso da história. É conhecer de perto os caminhos virtuosos e tortuosos que levaram a tais textos. Lambi algumas das suas feridas, partilhei do seu estado de graça, aprendi com as suas escolhas. Conheço-o demasiado bem para ter a audácia de lhe dizer "conheço a mulher da tua vida". Ainda ontem estivemos juntos a comer pão enchumbado em óleo. Falamos todos os dias e mesmo assim cumpro com fidelidade o ritual de ir ver se escreveu alguma coisa nova. Para me deliciar com mais uma digestão em forma de palavras, de tudo aquilo que ele vai acumulando enquanto habitante do planeta Terra.
Cada qual terá as suas motivações para seguir as coisas que escrevo. - O que é que vocês desconhecidos, vêm aqui fazer? Eu não tenho o direito de fazer esta pergunta, mas já a fiz! Os desconhecidos que me visitam criaram uma ponte entre eles e mim. Uma ponte que eu não posso atravessar porque eu não a consigo visualizar. E eles podem sempre cá vir ver-me. Não me parece muito justo, mas ao fim ao cabo, é sempre bom ter visitas...

quarta-feira, 24 de março de 2010

A pouco e pouco

Acordar não é de todo uma tarefa fácil. Bom, na verdade, acordar até é simples. Afinal de contas é um processo natural. O problema é acordar a uma hora previamente definida! Não temos a possibilidade de recorrer diariamente a formas agradáveis de despertar tais como: o berbequim das obras na cozinha do vizinho do lado, o sapateado de salto agulha da vizinha de cima ou a gritaria do bebé de 12 anos da vizinha de baixo. A única solução é realmente o despertador. O Rádio Am/Fm com alarme tem caído em desuso. As luzes vermelhas psicadélicas e o ruído de fundo da corrente, podem ter sido a justificação para este declínio. Ou então as pessoas simplesmente deixaram de acreditar que um dia alguém lhes telefonaria do programa Jogo da Mala da Rádio Renascença. Como agora não tenho telefone fixo, deixei infelizmente de ouvir esta mítica rádio. Optei assim por me modernizar e passar a utilizar o alarme do telemóvel. Ao longo deste últimos anos não faço ideia de quantas vezes mudei a música para despertar. A música perfeita é meio caminho andado para um vigoroso abandono do vale dos lençois.
As 3 últimas músicas que fizeram o papel de galo de campo foram:

Adágio para cordas - Esta é a música principal do filme Platoon. Como a música é um bocado deprimente e recorda os horrores da guerra, nada melhor que saltar da cama e ver que a luz que emana da janela, não é a dos clarões de bombas a explodir.
Glamourosa - Ouvi esta música milhões de vezes nas quentes madrugadas brasileiras. Como eu regressava ao hotel para o pequeno almoço, esta música dava-me sempre energia para começar o dia pronto para sambar.
Sai-usi-uma - Esta música timorense lembra-me sempre os meus putos do Santa Bakhita e de como eles sempre acordavam antes de mim. Sempre me soudavam com um enérgico "Bom dia irmão João" e essa lembrança sempre me pôs bem disposto.

Hoje de manhã descobri na letra de uma canção que a melhor forma de acordar nada tem a ver com música. Passo a partilha esta enorme descoberta com todas as pessoas que padecem da mesma maleita que é a preguicite aguda.

"Vá lá, são 7 e meia amor e tens de ir trabalhar. Acordas-me com um beijo e um sorriso no olhar. E levantas-me da cama depois tiras-me o pijama. Faço a barba e dá na rádio o José Cid a cantar"

Aqui está!! Nada mais simples do que isto. Tendo em conta que pijama é coisa de maricas e que já não faço a barba há 3 semanas, está visto que vou continuar à procura da música perfeita para acordar! A pouco e pouco lá chegarei.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Palavras fortes

Não sei qual é a origem dos palavrões. Sei apenas que não consigo viver sem eles. Há quem os categorize de gíria. Eu prefiro chamar-lhes de palavras fortes. Não consigo imaginar a minha vida sem palavras fortes. Alguns episódios da minha existência, deixariam de fazer qualquer sentido, se não tivessem sido empregues palavras assim. Os mais conservadores seguramente me acusarão de utilizar palavrões em vez de vírgulas. Em certos ambientes é o que na verdade acontece. Mas apesar de as palavras serem as mesmas, isso não significa que queiram sempre dizer a mesma coisa. Conheço muito bem o dicionário das palavras fortes. Na verdade, é das poucas coisas sobre as quais eu poderia ser considerado como uma sumidade. A razão está associada ao número de vezes que as disse e que as ouvi com verdadeira intenção. A intenção das palavras fortes não é de todo aquela que advém dos seus sinónimos directos. Eu pelo menos não pretendo mandar ninguém, fazer amor consigo próprio, para o orgão sexual masculino ou para as fezes. E muito menos mandar a pessoa para a sua mãe injuriando-a em simultâneo.
As palavras fortes são marcos vivos de emoções. Assinalam desgostos e paixões, derrotas e conquistas, desilusões e surpresas. Usados correctamente funcionam como que balões de oxigénio, janelas abertas, nós de gravata desapertados. O alívio pode não ser muito, mas há qualquer coisa de verdadeiro nestas palavras.
Não sei até que ponto sou um bom utilizador destas palavras. Mas por vezes penso nelas. Nas que disse e nas que ouvi. Recordo emoções...É pá já são 19h20!! Foda-se que já estou atrasado para o futebol.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Amarelo torrado

Demorei muito tempo a ler um livro amarelo torrado. Não estranho que o pó da minha casa tenha escolhido este livro para moradia. Não pela cor da lombada, mas pelo que lá dentro se encontra "Mas penso nunca voltar, pois sei muito bem que a nostalgia de um lugar apenas se enriquece se se conservar como nostalgia, e que a sua recuperação significa a morte".
Sábado a cidade decidiu sair à rua. Lisboa estava com saudades de andar de lado em lado. De um só trago sorveu todo o Sol que a alumiava nesse dia. Um copo de sol on the rocks, por que afinal, o frio de Inverno ainda não abalou para outras paragens.
Decidi juntar-me à procissão de gente e levei o livro pela mão. Segui o curso do Tejo. Comecei pela foz, mas na verdade, não me deti muito tempo por ali. Desta vez não me causou qualquer fascínio o abraço convulso entre as águas doces e salgadas. Caminhei para a nascente mas sabia que nunca lá chegaria. Animei-me com a ideia de estar a caminhar em direção à pureza. Afinal de contas, todos buscamos a verdade. E eu buscava-a num rio. Dois italianos interromperam a minha caminhada para me perguntarem qual o comprimento da ponte 25 de Abril. Atirei 3 Km mas sem qualquer convicção. Findo este encontro, continuei a minha caminhada. Vi-me então debaixo da ponte e deixei-me estar a ouvir o ruído que vinha de cima. A vida pulsava de forma constante e barulhenta e eu sentia-me magneticamente atraído por aquele movimento. A determinada altura olhei para o ocaso para apreciar a trajectória de um avião. O sol já estava muito baixo e, os meus olhos, ao invés de focarem o avião, foram parar num velho cais ali existente. Vi um perfil feminino lá sentado. Com o olhar fixo no horizonte e o rosto reflectido nas águas. Aproximei-me um pouco, para poder ter um angulo de visão mais ajustado. Sentei-me num banco a admirar a tranquilidade que aquele perfil emanava. Sou novamente abordado pelos dois italianos: "Serão mesmo 3 Km?". Olho para a ponte novamente e faço-lhes a vontade "Talvez sejam só 2". Ficam com a resposta pretendida: "Sim, devem ser apenas 2". Quando se afastaram de mim olhei para o velho cais. Ela já lá não se encontrava.
Comecei a minha caminhada de regresso e achei curiosa a cor do pôr do sol: amarelo torrado. O adeus ao velho cais com a nostalgia do momento vivido. Fui para casa e terminei o livro.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Garrafas de óleo boiando vazias

Não sei para onde vou, mas sei que estou a ir. Todos os dias mais perto, mas ainda sem avistar o meu destino. Os dias são agora mais curtos. Mas isso não trava que eu esteja cada vez mais morto. E ainda não cheguei a algures.
As vagas são altas. Por vezes ouço garrafas de óleo boiando vazias. Mas nem mesmo o gerúndio faz com que as consiga encontrar neste cenário de ilusões. As ondas levam-nas de volta à escuridão dos sonhos. E ainda estou em nenhures.
Para onde vai toda esta gente que corre no passeio? Apetece-me seguir cada pessoa com que me cruzo. Entrar no seu mundo e perceber como fizeram para encontrar o caminho. Certamente que haverá um guião. E ainda não cheguei a algures.
As minhas cordas vocais de vez em quando bradem aos céus:"Está aí alguém?". A única resposta continua a ser o borbulhar da espuma do mar. Nem um suspiro de vento para bolinar. Sempre teria alguma coisa com que me entreter. E ainda estou em nenhures.
Há muita gente que afirma ter encontrado o seu lugar. Mas ninguém parece disposto a partilhar qual o segredo para trilhar esse caminho. Por que afinal de contas não existe qualquer segredo. A única coisa que realmente aconteceu, foi um prematuro lançar da âncora. Sem terem achado a verdadeira emoção das suas vidas. Como resultado, a ida para a prisão sem passar pela casa da partida. E é este monopólio de fala-baratos que nos tenta convencer a ficar por aqui.
São poucos aqueles que verdadeiramente se encontram. Mas são esses que me estimulam a percorrer o meu caminho. Mesmo que, por vezes, me encontre, algures no meio de nenhures.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Cores primárias

Só a tua lente para me capturar assim. Sempre me vi mais monocromático. Entre o xaile negro do fado e o branco caiado do Alentejo. No fumo que exala de um cigarro e na nostalgia de uma lágrima derramada. Na geada que cobre os campos e no último suspiro de Outono. Creio que é algures por aqui que me encontro. Ver-me pelos teus olhos é para mim uma surpresa. Como se me visse pela primeira vez. Ao princípio tenho dificuldade em manter os olhos abertos. Tanta cor. Tanto entusiasmo. Tanta coisa por explicar. Eu que sempre entendi o mundo a dois tons. Maior ou menor. Vontade ou apatia. Coragem ou medo. Mas ao mesmo tempo o mundo pinta-se a três cores: azul, amarelo e vermelho. Chamam-lhes cores primárias. E é na paleta de cada um que também nos podemos encontrar. Como um farol num dia de nevoeiro. Uma pista, um rumo, um sinal. E já não estamos mais perdidos. E o dia já não é mais cinzento. E de noite vemos as estrelas. E em ti.... e em ti também me encontro.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Jovem procura cavalheiro

No meio das comemorações (ou lamentações) dos já 6 anos a viver em Lisboa, recebi o seguinte SMS : "só tenho um cachecol de quando o porto ganhou a taça uefa contra o betis de sevilha". O que esta mensagem tem de verdadeiramente especial, foi o facto de ter sido enviada por alguém que vive em Lisboa. A minha vida na capital do império, tem sido pautada pelo encontro com pessoas fascinantes. Assim que a minha lancha poveira atracou no cais, tinha à espera, grande parte da família, vizinhos e amigos do tempo universitário. Fiz rapidamente amizade com colegas do trabalho e com outras pessoas que fui conhecendo. Todas estas pessoas partilham de uma coisa: não percebem nada de futebol. Vocabulário como "toque de letra", "roleta marselhesa" ou "trivela" não existem no léxico das minhas amizades alfacinhas. Já para não falar de expressões mais triviais como "obriga a jogar mal", "brinca na areia" ou "chuveirinho".

Ontem fui à casa do meu amigo Bruno e tive esta conversa.
Sr. Nogueira - "Sabes João, o José Mota foi despedido do Leixões"
João - "É mais uma chicotada psicológica"
Sr. Nogueira - "Entrou o Castro Santos. O espanhol."
João - "Esse não treinou o Braga?"
Sr. Nogueira - "Exacto"
João - "Era o antes do Jesualdo?"
Sr. Nogueira - "Sim, mas não sei exactamente quando."
Bruno - "Tu de quando a quando estiveste na Universidade"
João - "1998 a 2002"
Bruno - "Foi nessa altura porque o restaurante debaixo da tua casa tinha lá os posters do Braga"
João: - "Não era Fernando Castro Santos?"
Bruno - "É esse mesmo"

Não houve uma única vez ao longo destes anos todos que tivesse o prazer de assistir a uma partida de futebol acompanhado pelas pessoas que fazem a minha vida em Lisboa. Mesmo os jogos que vi na companhia dos meus irmãos não contam, por que se nos jogos importantes da selecção estão a vibrar, já nos outros jogos, estão com um olho na televisão e outro no cigano (velocidade do vento, comida que vem da cozinha, revista de jogos da playstation...). Tenho por isso que arranjar em Lisboa uma companhia para ver os jogos. E no caso do futebol terei de limitar a escolha ao sexo masculino. Conheço raparigas que sabem imenso futebol, mas não conheço nenhuma que tenha feito as colecções das cadernetas. Por isso é quase impossível encontrar uma rapariga que saiba quem é o Pierre Littbarsky, o Burruchaga ou o Makanaky. Decidi por isso por um anúncio num jornal na parte dos classificados: "Jovem procura cavalheiro para visionar jogos de futebol em conjunto. Máxima descrição".
Se isto não funcionar posso sempre fazer a técnica do Jamaica... (piada privada que não interessa a todos os leitores, ficando a promessa de utilizar mais piadas privadas para que todos se sintam especiais)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Um dia em forma de horóscopo

Enquanto as batatas terminavam e os grelos eram salteados tenho a seguinte conversa:

“Pode ser que a entrevista seja já esta semana”
“O teu horóscopo de hoje fala disso”
“Ai é? E então?”
“Diz que vai haver mudanças em termos profissionais”
“E no amor, como é que está?”
“Só lá para dia 13”

Um jornal de hoje reza assim “Não comece nenhum tipo de relacionamento neste período. Espere até ao dia 13. Carreira em alta com algumas mudanças positivas previstas”. Como eu nunca soube o que a palavra carreira realmente significa, fico-me apenas pela primeira parte do horóscopo. Com que então tenho que esperar até dia 13 para começar um novo relacionamento. Já estou super entusiasmado com esta possibilidade e mal posso esperar pelo dia de amanhã, pois assim Sábado ficará ainda mais próximo. As minhas expectativas são já um balão de ar quente a roçar o telhado da atmosfera. O que é que me esperará? E como é que devo lidar com isto? Afinal de contas, como deveremos nós lidar com as expectativas?
Sento-me no Chiado e observo duas expectativas. A primeira em forma de mulher. Vestida com um fato de corte clássico. Cabelo apanhado e unha feita. Tem uma passada vigorosa e repleta de confiança, apesar dos dossiers e do computador que carrega. Hoje saberá se irá ser promovida. Para além do prestígio e orgulho, um cheque mais gordo no final de cada mês. A segunda expectativa é em forma de homem. Como roupa, umas calças largas e uma camisola de carapuço. Tem rastas e unhas sujas. Toca rock& roll na guitarra e faz o compasso com o pé esquerdo. Hoje constatará se gostam da sua música. Para além do reconhecimento e estímulo, uns trocos para o jantar do dia.
Gerir uma expectativa é talvez a batalha entre o valor que nós próprios atribuímos a uma coisa e a importância real dessa mesma coisa. Esta é no entanto uma luta desigual. O valor que nós próprios damos a determinada coisa, é muito mais forte e condicionante (ver certas realidades do mundo equilibra esta balança para o lado da importância real....tenho de escrever isto em letra pequena para não me acusarem de bater no ceguinho) . A mulher talvez não recupere se não for promovida. O homem continuará a sobreviver mesmo que a caixa da guitarra não some cinco euros. Ela talvez meta férias para reflectir. Ele continuará a ir para a rua tocar.
Um jantar que saiu queimado. Há quem faça um drama muito grande. Há quem diga que é apenas mais uma refeição.
Dia 13 poderei começar uma relação. Poderá ser a mulher da minha vida. Poderá ser mais um caso forte a mais. Ou afinal de contas, poderá não ser nada disso. Apenas mais um dia em forma de horóscopo...

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A dimensão da tragédia

A dignidade da morte anda por aí. Abre telejornais, assina artigos de opinião e ocupa a boca de alguns comentadores. Seja lá para onde for que a gente se vire, ali está ela pronta a dizer-nos de sua justiça, o que se passa no Haiti. Corpos tratados como lixo e que muito emocionam os espectadores, os leitores e os ouvintes. Eu não fico indiferente a uma tragédia desta dimensão. Mas se a discussão é feita apenas sobre matéria, vou então falar do meu corpo. Quando eu morrer pouco me importa o que possa acontecer ao meu corpo. Se enterrado numa lixeira, se queimado com o desportivo do dia anterior, se retalhado numa aula de anatomia. Lançado aos tigres do jardim zoológico ou desfeito numa fábrica de sabonetes. Apenas sei que não quero que se faça qualquer memorial físico.
Portugal tem no Haiti pelo um menos um par de jornalistas de cada estação de televisão. Se o mesmo se passar com todos os outros países desenvolvidos, estaremos a falar de quantos jornalistas no teatro das operações? O mundo precisa de saber o que está a acontecer no Haiti. Serão estes relatos que potenciam a solidariedade que há dentro de nós? Sim, creio é um factor muito importante. O mundo ficou chocado com o que viu. Mas daqui a umas semanas já ninguém se irá lembrar. Será que este contingente noticioso irá lá estar daqui a um ano? E daqui a cinco ou dez anos?
Nunca interessa falar da dignidade da vida! O Haiti era dos países mais pobres do mundo. Alguém sabia disso? Não, claro que não. Isso nem é notícia. Não vende jornais e não aumenta o share de audiências. Nas minhas viagens por países pobres, sempre me perguntei, como certas coisas que vi, não eram notícia todos os dias.
A dimensão da tragédia não está no número de mortos. Está no número de vivos tratados como mortos. Se calhar eu é que sou burro, ou como um grande amigo meu me disse:"Desde que foste para a Tailândia que tens a mania" ... eu não fui à Tailândia...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Prova de esforço

Nem todas as provas de esforço precisam de um médico e de eléctrodos. No mundo dos afectos apenas precisamos de uma passadeira rolante para fazermos a nossa própria prova de esforço. Somos nós os nossos próprios clínicos e sensores. A passadeira rolante, nada mais é, do que o conjunto de vicissitudes da passagem do tempo por nós. Ao longo da vida somos muitas vezes confrontados com situações que requerem uma prova de esforço. A grande mairia das pessoas não tem essa consciência. Preferem arrastar-se doentes no mundo dos vivos, a arriscar um uppercut que as poderá levar novamente ao tapete. Existem no entanto pessoas que tem a coragem de realizar uma prova de esforço. A duração de cada uma depende do problema a avaliar e da capacidade que cada um tem para lidar com o mesmo. Perante o mesmo problema, algumas pessoas claudicam ao fim dos primeiros metros enquanto que outras resistem um pouco mais. Mas toda a gente cai. Mais ou menos vezes. As quedas na passadeira podem ser muito dolorosas e fazer tinir o sino da derrota, do desânimo e da perda de confiança. E acima de tudo, do medo de voltar ao mundo de fantasmas aonde nos encontavamos. De passar por tudo outra vez.
A busca da felicidade é a audácia de saltarmos para cima da passadeira. Independentemente das quedas que certamente nos esperam. E estar preparado para tombar novamente, é estar preparado para o dia em que não vamos cair. Para o momento em que vamos correr já sem sentir o chão por baixo dos nossos pés. E aí o sorriso volta. E com o regresso do sorriso, todo um mundo novo a descobrir :)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O dono de casa

Não sei quando é que um homem aprende a ser dono de casa. Uma boa educação é meio caminho andado. Sempre tive que pôr e levantar a mesa, fazer a minha cama e passear o aspirador pela casa. Os vidros, o pó e a louça são também tarefas que sempre conheci. Quiseram os exames nacionais que fosse estudar para a Universidade do Minho. Apenas vi um casa de estudantes. O diálogo com os meus pais foi bastante simples:
Pais: "Esta casa não tem condições nenhumas"
Filho: "É aqui que eu quero ficar"
A casa tinha apenas uma regra: a limpeza semanal. Esta estava dividida em secções: cozinha, casa de banho pequena, casa de banho grande e sala/corredores. Esta regra tinha surgido uns anos antes da minha entrada, num dia em que o Brandão se encheu de fúrias perante a imúndice e decidiu radicalizar, atirando toda a comida que viu contra paredes e chão. De forma a que o mundo mantivesse o equilíbrio, tais anciãos criaram em simultãneo uma contra-regra: "quem não limpar a sua secção semanal tem de pagar uma multa de 500$".
A ver pelo estado da casa era natural que na caixa das multas estivesse um verdadeiro jackpot. Mas o que é facto é que isso nunca se verificou. A razão é simples: regras e contra-regras são para ser infringidas.
A casa foi assim mantendo ao longo dos anos uma respeitável camada de musgo nas cortinas da casa de banho, uma coloração escura na cozinha por não existir exaustor e uma boa quantidade de sacos do lixo a apodrecer na varanda. A casa poucas vezes foi limpa da forma como deveria ter sido, na qual cada um dos quatro rapazes se responsabilizava por uma secção. O que acontecia era eu limpar a casa toda num dia e noutro dia um dos meus amigos fazia o mesmo. Ninguém avisava ninguém e não havia qualquer escala ou calendário. Se alguém estava a limpar apenas significava uma coisa: alguém iria lá dormir!! E como se compreende, de tudo o que escrevi em cima, quem ia lá dormir não era rapaz.
Hoje foi dia de limpeza cá em casa! Será que amanhã alguém vem cá dormir? Se apostaram que sim então acertaram! Como é que sabiam? Olhem que eu tive uma boa educação!!!!!