terça-feira, 1 de junho de 2010

Dia do Adulto

Não sei quantas aventuras vivi naquele quarto. Fiz de árbitro no braço de ferro, empatei na minha primeira partida de xadrez, vi os abajures do candeeiro a quebrarem-se sobre a cabeça do meu irmão. Perdi sempre a jogar poker, dei nomes de futebolistas aos berlindes, escrevi os primeiros recados de amor. Atirei legos com toda a força do meu braço, procurei países impossiveis no globo iluminado, fumei cigarros feitos de corda de sisal. Aprendi os primeiros acordes da guitarra, escondi-me debaixo da cama, queimei as formigas que se acumulavam no parapeito da janela. Esperei pelo Twin Peaks, borrifei com água os lencois na noites quentes de Verão, colei cromos nas cadernetas. Berrei para o quintal do Bruno, dormi no chão entre as duas camas, dei uma mija na cadeira da roupa. Gravei músicas da Radio Cidade, preguei pioneses coloridos no peão, guardei dentes debaixo da almofada. Fiz mil batalhas com os soldadinhos, enfiei gatos dentro dos lençois, pendurei posters de jogadores da NBA. Guardei tortas dancake na escrivaninha, apontei a fisga de grampos aos estores do vizinho, fiz os trabalhos de casa. Li as revistas do Conan o bárbaro, pus cruzes no totobola, ensaiei a leitura da comunhão solene. Disparei chumbos de uma pressão de ar, enchi inúmeros balões, plastifiquei os livros escolares. Enrolei rifas de papel vegetal, fiz meio ponto em bocados de talagarça, pilotei dezenas de carrinhos.A noite passada mal consegui dormi. O quarto não me reconhece. O espelho não consegue ver para além da minha barba, o chão estranha o peso do meu corpo, a janela admira-se por não ficar à altura do meu pescoço. São muitas as desconfianças que têm a meu respeito e não me dão um momento de sossego. O espelho finge que tomba, o chão range constantemente, a janela teima em abrir-se. Não consigo imaginar como será a noite de hoje, mas não estou nada optimista. O quarto teima em não acreditar que ainda sou a mesma criança que nele viveu tantas façanhas. Um quarto que foi o meu castelo, o meu palco, o meu esconderijo. Celebrarei o Dia da Criança mesmo à sua revelia. Hoje não irei lembrar a minha meninice. Irei sim reviver as crianças que encontrei há exactamente um ano atrás em Timor Leste. As crianças que sorriram no dia em que cheguei, as crianças que choraram no dia em que fui embora. Vou fazer a viagem a estas memórias de gargalhadas e de lágrimas. O tempo em que sendo adulto, voltei a ser criança. Quem sabe, no fim de ouvir esta história, talvez o quarto me deixe dormir...

3 comentários:

Anónimo disse...

É que com tanta aventura o quarto também envelheceu, e deve tar a ver mal.Dá um abracinho na porta ao entrares que ela passa a informação.
É o p.. tá cá hoje iupy!

Ana disse...

:) o meu primeiro quarto tem agora uma mini me....quando a estou a adormecer talvez ele me reconheça...daqui a uns meses terá um mini us....

Telemaco disse...

wow, acho que toda a gente que ler este teu post inspirado vai fazer a sua propria viagem... longas viagens!
Um dos meus espacos mais ricos e' o debaixo da cama! As coisas que por la passaram! Era o meu cofre! E depois havia a gaveta. E depois a parte de tras da porta!