quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O fim do mundo

A contagem decrescente para o fim do mundo está em marcha. Isto de se esperar uma eternidade pela concretização da profecia Maia dá cabo dos nervos a qualquer um. Felizmente, o mundo está repleto de impacientes, que em inúmeras ocasiões ao longo da história, tentaram fazer pelas próprias mãos, aquilo que estava traçado pela antiga civilização do continente americano. De tudo se tentou um pouco, desde o homem gordo que vindo do céu pousou em terras de samurais até ao homem magro de tez de caril que perdeu premeditadamente a voz. Facto é que nada resultou, e por isso, as atenções voltam-se agora para sexta-feira.
Não sei de que forma o fim do mundo se apresentará. Sei no entanto a forma como eu me apresentarei ao fim do mundo. Não tive que pensar muito no assunto, pois na verdade, tudo se resume ao advérbio “já”. Já saltei de pára-quedas, já copiei num exame, já comi esquilo. Já brilhei num karaoke, já chorei num comboio, já rapei o cabelo. Já matei um rato, já mudei uma fralda, já fiz surf. Já li uma carta de amor, já vi o peixe-palhaço, já apanhei um soco. Já me mascarei de pirata, já discuti com um padre, já bebi absinto. Já escrevi uma música, já vendi calendários, já enterrei um golfinho. Já arranjei grelos, já dormi na floresta, já insultei um árbitro. Já andei de bicicleta, já dancei em cima da coluna, já apanhei amoras. Já fiz batota, já vi o sol nascer no mar, já dei os pêsames a alguém. Já engarrafei vinho, já corri de madrugada, já li em casamentos. Já dei aulas a crianças, já lambi selos, já furei um dente. Já bati com o carro, já dei uma esmola, já lavei o chão. Já fiz sauna, já pedi um autógrafo, já estive em antigos campos de concentração. Já celebrei a liga dos campeões, já cantei janeiras, já fiz uma radiografia. Já tomei banho com a água da chuva, já saltei fogueiras, já tive piolhos. Já arranquei uma unha, já dancei kizomba, já construi uma jangada. Já… .
Ao contrário de muitos homens, acredito num fim do mundo suficientemente paciente para escutar-me até ao meu último e derradeiro “já”. A lista dos “já” é dramaticamente finita pois está limitada a praticamente 33 anos de existência. Espero no entanto, que após o meu último “já”, o fim do mundo me questione se tenho algo mais a acrescentar. É que a minha lista dos “ainda” poderá adiar a profecia por uns tempos...


quinta-feira, 26 de julho de 2012

A velha gelataria


Abraçado a Ela, entrei. Um longo dia no areal brilhava na nossa tez morena. Tudo naquela pequena vila sinalizava a estação do calor. As esplanadas repletas de conversas, as toalhas garridas nas varandas, os sacos de carvão à venda. Deparei com a velha gelataria encerrada. A bolacha caseira e as bolas de amora assim perdidas. Uma morte anunciada a cada Verão pelo já descolorado “Passa-se” que pendia na janela. Portas trancadas e ausência de sinais vitais. Disse a mim próprio que talvez me tivesse enganado na rua numa tentativa de suavizar a minha desilusão. Mas não havia dúvidas que era aquela a esquina dos meus gelados preferidos.
A vila estava agora diferente da que recordava. Claramente mais pobre. A gelataria era a alma daquela terra. Como o coliseu em Roma, os leões no Serengeti, o caril na Índia. Ela que me abraçava, ficou também mais pobre, privada dos sabores que eu tanto lhe tinha prometido. A pequena vila pulsava agora das novidades que aí se tinham estabelecido:  o padeiro alemão,  a nova pensão, a loja em que entrei abraçado a Ela. Na montra plantada em frente à antiga gelataria cintilavam diferentes artigos de Verão: os colares e as pulseiras, os óculos de sol e os chapéus, as túnicas e os chinelos. Talvez a localização da loja tivesse sido decidida a pensar em mim. Como que um abraço à melancolia de todos aqueles que encontravam a velha gelataria encerrada. A loja convidava a entrar, não tanto pelo que podíamos lá dentro encontrar, mas por um qualquer equilíbrio magnetizador em que tudo se achava. Abraçado a Ela, aproveitei a oportunidade para comprar uns chinelos novos. Nem a melhor recauchutagem poderia acudir aos chinelos que calçava. Seis anos de existência e meio mundo calcorreado, tornavam óbvia a fidelidade à marca. Optei por um modelo exactamente do mesmo formato. Não havia por isso quaisquer dúvidas em relação ao tamanho. Em relação aos chinelos que suportavam o peso do meu corpo pela última vez, só se encontravam duas diferenças: a cor e o estado em que se encontravam. Apesar de todas as certezas (marca, modelo e tamanho) decidi experimentar os novos chinelos. Uma prova dos nove que se revelou obviamente desnecessária pois os chinelos serviam na perfeição. A única barreira que ainda impedia que os novos chinelos encontrassem morada imediata nos meus pés era acertar as contas com a funcionária da loja. Enquanto tirava o dinheiro da carteira, Ela com quem entrei abraçado na loja, perguntou: “Vais mesmo levar esses chinelos?”. “Claro que sim”, respondi eu. Ela anuiu com um “Ah, ok”. Vi uma certa incredulidade na sua expressão e inquiri-lhe os pensamentos. “É que os chinelos não te servem. São pequenos.”. Se alguém conhecia os meus pés, esse era eu. Já estava preparado para lhe dizer - “Estás ver como são os outros?” - quando enfiei os dedos nos chinelos que me deu a experimentar. Apenas consegui verbalizar um “Obrigado” porque aquele sim, era o meu tamanho.
Saí da loja abraçado a Ela e sorri para a velha gelataria uma última vez. Desta vez mais rico do que quando cheguei, pois afinal de contas, agora sabia um pouco mais sobre mim próprio.  E foi por elas que o descobri. Pela velha gelataria e por Ela que me abraçava…

terça-feira, 24 de julho de 2012

A casa de banho gourmet


Hoje falaram-me da existência de uma espécie de casa de banho gourmet. Pelo pagamento de uma modesta tarifa (necessidade incluída no preço) poderemos ter assim acesso a toda uma experiência sensorial. O salmão com alcaparras conseguiu, ainda que por uma breve vantagem, manter a minha atenção confinada no almoço, e por isso, os pormenores sobre esta casa de banho tiveram de esperar pelo café pós-prandial. As nuvens com aroma a grão torrado ainda se desprendiam da chávena quando descobri toda uma série de artigos a fazer referência a “The Sexiest WC on Earth”. Limitei o meu interesse à informação disponibilizada na primeira página do motor de pesquisa. Certamente que esta casa de banho terá os seus créditos e que merecidamente deverá constar do roteiro turístico da cidade. Não ponho isso em causa e aproveito desde já para desejar o maior sucesso aos seus criadores e momentos bem passados a todos os seus visitantes. O que acontece é que eu já tenho bem claro sobre qual a casa de banho mais sexy do planeta, e por isso, não estou interessado em investir o meu tempo nesta nova atracção. Arrisco-me a ficar para sempre na ignorância, mas como em tudo na vida, temos de tomar as nossas opções e arcar com as devidas consequências.
Encontrei um dia almoço nos arrabaldes do Hospital de Évora. Recordo-me perfeitamente que pedi o prato errado. Não que este estivesse mau, mas porque o que efectivamente me apetecia era a iguaria que constava em quarta posição da lista de pratos do dia. A sofreguidão dá nesta coisas e só após umas quantas azeitonas e fatias de pão, me apercebi da precipitação que tinha cometido. Conta paga e é tempo de regressar a Lisboa, mas nunca antes, de uma actualização da função renal. A casa de banho era do género minimalista: uma retrete, um lavatório e uma toalha. Até aqui nada de novo, não é verdade? Acontece porém que as paredes encontravam-se repletas de posters e fotografias de mulheres seminuas. Sobre diferentes paisagens e nas mais diversas poses. É sempre arriscado rir quando se urina de pé, mas não consegui conter a minha alegria. Pensei em inúmeras motivações que poderiam justificar tal decoração, mas algo muito mais importante animava a minha mente: “Como será o WC feminino?”. Uma curiosidade infantil instalou-se em mim sem que eu tivesse oportunidade de a negar. Recordo-me de lançar os olhos pelo balcão do restaurante antes de me atirar para dentro do WC feminino. Poucos segundos bastaram para conhecer a verdade: uma retrete, uma lavatório, uma toalha e inúmeros posters de homens seminus. Saí do restaurante e, em cima da minha mesa, a maior gorjeta que deixei na vida…  

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Ensaio sobre a primeira pessoa do plural

A aritmética da linguagem postula que a soma do Eu com o Tu tem como resultado o Nós. A pressão de não viver numa ilha deserta, obriga-me a aceitar tal operação como uma verdade absoluta, sob pena de me tornar um proscrito. Em público digo que sim, mas na segurança do meu quarto, digo que não. No meu espaço não faço concessões a crenças alheias. Haverá certamente muitas formas distintas de provar que o Eu + Tu ≠ Nós. Obviamente que qualquer teoria explicativa iria sempre perecer de peritagem. Não duvido que existam muitos especialistas de bancada, mas nenhum se atreveria a partilhar as suas ideias no grande auditório. A minha teoria é bastante simples e tem origem na minha vida de lenço e jarreteiras: se a etiologia do Nós estiver relacionar com a palavra Nó, então este Nós, terá de ser o de escota. Qualquer escuteiro dirá, que para unir duas cordas de diferente espessura, se deverá fazer o nó de escota. Sujeitinho de difícil execução e bastante moroso. Nesta linha de pensamento, o Nós seria assim algo de concepção complicada e que demoraria muito tempo. Escusado será dizer que esta é a leitura que quase toda a gente tem do Nós. A união do Eu ao Tu é por isso muitas vezes associada a cedências, obrigações e adaptações. E quantas vezes o Eu e o Tu não se perdem neste caminho? Basta ver o que acontece quando o Nós termina: o Eu e o Tu a procurar referências antigas de quem eram antes do Nós. Os seus prazeres, vontades e orgulhos.
Acredito num Nós maior. Nunca enquanto somatório do Eu e do Tu. Algo que não principia no Eu ou termina no Tu. O Nós é uma vocação, uma missão. Personalidade independente, com os seus próprios gostos, desejos e vaidades. Uma linguagem que é sinónimo de pureza. Desenhada num céu de estrelas, fiada a linho silvestre, cozinhada em lume brando. Nenhum ensaio sobre a primeira pessoa do plural lhe faria jus. E estando o Nós refém da sorte do destino, não sei porque decidi escrever sobre isso…