segunda-feira, 28 de junho de 2010

Sala de aula

Ao quarto dia a música entrou na sala de aula e as gargalhadas ganharam vida para além dos véus. Já me dizem que as aulas são boas e ainda agora os conheci. Talvez noutra vida tenha sido um palhaço de circo ou uma marioneta itinerante, mas algo acontece nestas salas de aula que me desarma de quaisquer amarras. Como se ali encontrasse o meu verdadeiro chão, o meu lugar de conforto, o meu trampolim de realização.
Um local como este não cabe em qualquer livro de viagens. Eu não tenho engenho para descrever o vómito e o arrebatamento que por aqui se gladiam a cada cruzar de esquina. Apenas me limito a aspirar todas estas sensações e a estender a minha mão ao afago desta gente...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Vias remotas

"Quem és tu?" é talvez a interrogação que mais vezes coloco. A alguém que me é próximo, a alguém que me é estranho, a alguém que sou eu próprio. São incontáveis as vezes que toquei o âmago de todos nós. Mas a minha garganta teima em ficar seca apesar de impregnada de essências de gente. Como se nunca fosse suficente para mim. E a interrogação uma vez mais lançada pelo ar.
Não sei quão longe poderei ir neste meu intento de conhecer o fundo de todos nós. Talvez deva apenas alegrar-me e dar graças pelas pepitas de ouro que os ribeiros todos os dias me oferecem. Mas há um desassossego que rege a minha vontade. Algo que destrona a consciência da loucura deste empreendimento. Ninguém tem culpa dos seus sonhos e é com a descoberta do filão que sonho todos os dias.
Existem formas de conhecer uma pessoa por via remota. Sem podermos ver a transparência dos seus olhos, sem ouvirmos o som que vibra nas suas cordas vocais, sem tocar a maciez da sua pele, sem sentir o sabor da sua língua, sem inspirar os seus aromas identificativos. Sem ler as suas palavras, sem admirar as suas obras, sem experienciar os seus gestos. Nada consegue substituir estas formas de adquirir conhecimento. Creio no entanto que há uma via remota que pode ajudar a escavar esta imensidão de areia que nos separa do mais belo tesouro. Essa via remota nada mais é que o complexo universo das influências. Por isso é que leio os livros dos outros, experimento a comida dos outros, vejo os filmes dos outros, visito os lugares dos outros, ouço a música dos outros.
O primeiro filme do Sexo e a Cidade tem uma determinada cena em que me revejo de uma forma imensurável. A Carrie Bradshaw está sentada em frente ao seu computador. No monitor está escrita apenas uma simples palavra. Os gestos que se seguem são de uma simplicidade e profundidade totalmente desarmante. E mais não digo. Para me conhecerem ou apenas porque sim...

terça-feira, 1 de junho de 2010

Dia do Adulto

Não sei quantas aventuras vivi naquele quarto. Fiz de árbitro no braço de ferro, empatei na minha primeira partida de xadrez, vi os abajures do candeeiro a quebrarem-se sobre a cabeça do meu irmão. Perdi sempre a jogar poker, dei nomes de futebolistas aos berlindes, escrevi os primeiros recados de amor. Atirei legos com toda a força do meu braço, procurei países impossiveis no globo iluminado, fumei cigarros feitos de corda de sisal. Aprendi os primeiros acordes da guitarra, escondi-me debaixo da cama, queimei as formigas que se acumulavam no parapeito da janela. Esperei pelo Twin Peaks, borrifei com água os lencois na noites quentes de Verão, colei cromos nas cadernetas. Berrei para o quintal do Bruno, dormi no chão entre as duas camas, dei uma mija na cadeira da roupa. Gravei músicas da Radio Cidade, preguei pioneses coloridos no peão, guardei dentes debaixo da almofada. Fiz mil batalhas com os soldadinhos, enfiei gatos dentro dos lençois, pendurei posters de jogadores da NBA. Guardei tortas dancake na escrivaninha, apontei a fisga de grampos aos estores do vizinho, fiz os trabalhos de casa. Li as revistas do Conan o bárbaro, pus cruzes no totobola, ensaiei a leitura da comunhão solene. Disparei chumbos de uma pressão de ar, enchi inúmeros balões, plastifiquei os livros escolares. Enrolei rifas de papel vegetal, fiz meio ponto em bocados de talagarça, pilotei dezenas de carrinhos.A noite passada mal consegui dormi. O quarto não me reconhece. O espelho não consegue ver para além da minha barba, o chão estranha o peso do meu corpo, a janela admira-se por não ficar à altura do meu pescoço. São muitas as desconfianças que têm a meu respeito e não me dão um momento de sossego. O espelho finge que tomba, o chão range constantemente, a janela teima em abrir-se. Não consigo imaginar como será a noite de hoje, mas não estou nada optimista. O quarto teima em não acreditar que ainda sou a mesma criança que nele viveu tantas façanhas. Um quarto que foi o meu castelo, o meu palco, o meu esconderijo. Celebrarei o Dia da Criança mesmo à sua revelia. Hoje não irei lembrar a minha meninice. Irei sim reviver as crianças que encontrei há exactamente um ano atrás em Timor Leste. As crianças que sorriram no dia em que cheguei, as crianças que choraram no dia em que fui embora. Vou fazer a viagem a estas memórias de gargalhadas e de lágrimas. O tempo em que sendo adulto, voltei a ser criança. Quem sabe, no fim de ouvir esta história, talvez o quarto me deixe dormir...