quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Um café na cidade

Nesta cidade há um café que permanece. Todas as noites se cumpre o mesmo ritual: correm-se as cortinas, tranca-se a porta, baixam-se as luzes. Os clientes são educadamente convidados a sair, os amigos tomam todo o espaço que lhes pertence. Puxam-se cigarros que nunca poderiam ser acesos, riscam-se pentes de sueca em blocos de notas, servem-se bebidas que não estão à venda. Existe todo um acenar de personalidade nestes gestos. A génese da identidade deste café reside nestes momentos de cumplicidade. No voltar à base, na desconstrução da personagem.
Pouco importa se este convívio se resume a breves fugazes instantes. Está lá tudo na mesma, como numa qualquer semente. O ar fica impregnado por um aura de reconhecimento. E é esta brisa que dia após dia cativa os seus clientes.
Por vezes pergunto-me se serei como este café. Cerrando a porta aos clientes deixando-me ficar na familiaridade dos afectos, referências e convicções. Purgando o lixo diário de interacções, no conforto de saber quem realmente sou. Vivendo constantemente suportado por estas terríveis forças de segurança. Cedendo a este poderoso magnetismo invisível que me mantém igual. Passando o tempo a fazer a manutenção das fundações e alicerces. Tudo assim no gerúndio.
Olho para mim e apenas vejo um projecto. Não chego sequer a ser uma obra inacabada. Conheço apenas um leve esboço daquilo que poderei ser. Talvez eu seja um barro difícil de moldar. Mas sou também o oleiro responsável por me criar. E se a decisão me cabe a mim, não quero ser como esse café na cidade...

1 comentário:

Godinho@1984 disse...

este post fez-me lembrar o "salao de festas"...