sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O Lado Negro

Ela está sentada à minha frente mas de costas voltadas para mim. Não imagino o que ela estará a estudar, mas consigo perceber inúmeros gráficos num livro aberto. Um marcador fluorescente amarelo sublinha as frases mais relevantes de uma sebenta que parece estar já bastante usada. Ela está demasiado debruçada sobre a mesa. Será por uma questão de postura ou um problema de visão? Impossível saber. Apesar de não lhe ver face, os seus gestos parecem traduzir uma certa ansiedade. Sim, ela está nervosa. Aposto que se tratará da repetição de um exame. Certamente não será a primeira vez que o fará.

Hoje a biblioteca está mais agitada que o habitual. As mesas estão praticamente todas preenchidas. É um claro sinal que o Verão terminou. Setembro é a época de recurso, os primeiros trabalhos de grupo, o retomar daquilo que se interrompeu nas férias. Há um ruído que preenche toda a sala de estudo. Cada mesa contribui com a sua parte. Eu próprio colaboro nesta peculiar canção urbana através do teclar descompassado deste texto. A música que se liberta dos meus auscultadores barra a entrada a todo este ruído. Basta olhar os gestos dos que me rodeiam para compreender o nível de agitação que se faz sentir.

Apesar de se encontrar numa das extremidades da sala de estudo, está claro que este barulho lhe é insuportável. A cada momento, volta-se para trás e prospecta toda a audiência em busca da origem do alvoroço. O seu olhar é o bramir do grito de fúria que tem de calar. Levanta-se e vai repreender um grupo de rapazes que partilha uma mesa. A batalha com o estudo parece dependente do sucesso da sua demanda pelo silêncio. Olha novamente para trás. Duas vezes, quatro vezes. O seu olhar é pólvora fulminante

Começo a ficar tão exasperado quanto ela. Para mim pouco me importa que esteja muito ou pouco barulho. Não consigo é suportar os seus movimentos. Apesar de estar focado neste monitor é impossível abstrair-me do que se está a passar mesmo à minha frente. Cada vez que ela se volta para indagar a sala, os nossos olhares esbarram de forma instintiva. Sete vezes, dez vezes. Neste momento ela poderia até ser a mulher mais bonita do mundo. Só quero que ela se vá embora ou que pare quieta de uma vez. Onze vezes, vinte vezes. Espero mesmo que ela reprove na porcaria do exame. Não suporto mais esta constância de movimentos na minha direcção.

Levanto-me com a intenção de educadamente a alertar para o quanto me está a incomodar. Não me apercebo que o meu espírito está já tomado pelo meu lado mais negro e não vou a tempo de evitar a tragédia.

"- Pare de olhar para trás. Daqui não leva nada. Sou um homem casado".

Não mais se mexeu.
   

2 comentários:

Unknown disse...

gosto sempre de textos destes, que se desenrolam e terminam de forma inesperada. como a vida, tantas vezes.

Bulak disse...

eu diria, "como a vida, quase sempre"