quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A Paciência

Há quinze anos atrás troquei um punhado de cartas com um parente. Passado tanto tempo, acredito hoje, que o termo de tal correspondência, se deveu exclusivamente a mim. Os estímulos da juventude condicionavam a minha vida como se eu já estivesse atrasado no tempo. Não sei o que perdi na infância e na adolescência, para que na juventude sentisse tal urgência em correr. A perspectiva do tempo, que então ignorava, era no entanto para o meu parente, uma declarada preocupação: "O maior óbice está no tempo que, como deves imaginar, no meu caso apresenta um saldo muito baixo".

Não há nada que eu admire mais do que um idoso. A sociedade, como em tantas coisas mais, adianta inúmeros critérios para a definição de idoso. A reforma ou o desconto nos bilhetes de comboio são dois bons exemplos. Estes indicadores poderão ser muito úteis para uma consciência colectiva, mas a definição de idoso, em minha opinião, apenas ao próprio diz respeito.
Eu fui o último familiar a viver com a mãe do meu parente. Numa determinada noite, despertei com um inaudível gemido de dor. O cenário que encontrei na sua casa de banho perturbou-me imenso mas fiz aquilo que tinha de ser feito. Ela chorava baixinho enquanto eu a limpava e a carregava de novo para a cama. No jantar do dia seguinte ela agradeceu-me e pediu-me desculpa. Custou-me mais isso do que a cena do dia anterior. Na casa de banho encontrei uma mulher deitada no chão, mas naquela cozinha encontrei uma idosa a despedir-se de mim.

Os mais velhos são os que mais sofreram. Viram partir grande parte dos seus afectos fossem estes de sangue ou por eles escolhidos. Muitos despediram-se até daqueles de que não era suposto. Folhas verdes arrancadas à árvore da vida, apenas, e só, porque sim. Os mais velhos são também os que mais perdem. Agora precisam de ajuda para carregar o saco das compras ou que alguém lhes recorde o nome dos filhos. Não conseguem mais controlar muitos dos seus gestos. O que é que move os idosos quando tudo lhes parece travar o caminho? A paciência poderá ser a resposta.

Para ser sincero, acredito que a paciência é uma faculdade exclusiva dos idosos. Os comportamentos mais tolerantes que se observam em idades mais tenras são meros laivos de paciência. Apenas um idoso consegue aguardar uma semana inteira por uma visita ou um telefonema. Muitos poderão já não reconhecer a identidade dos afectos, mas continuarão sempre à espera. O pai do meu parente dedicava horas intermináveis aos seus dois baralhos de cartas. O jogo da paciência era a sua companhia. Não sei se o meu parente terá herdado o gosto pelo jogo de cartas. Talvez não tenha tempo e, ainda hoje, aguarde ansiosamente, a carta que nunca lhe escrevi...

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