sábado, 5 de janeiro de 2008

Manobras desalinhadas

O nosso corpo é um traidor. Assim que viramos costas, somos atingidos por esta evidência. É inacreditável o número de mazelas que acumulamos sem ter sequer uma ideia da sua origem. O pensamento não está adaptado com o corpo que o conduz. Por isso vamos contra portas, tropeçamos em nós mesmos e as próprias unhas, parecem lanças de automutilação. Existem no entanto acidentes de percurso, que podem não marcar o nosso corpo, mas que marcam mais a fundo ainda, o nosso comportamento: a dança do garfo e faca. Um segura o bife enquanto a outra executa linhas de corte retilíneas. Por artes quase mágicas, o corpo toma conta da ocorrência e surge um movimento mais brusco. Resultado: roupa manchada pelo molho de pimenta rosa. A camisa verde alface onde pasta o cavalinho bordeaux de uma marca qualquer, fica deste modo sarampintada pela dita guarnição. Os corpos alheios soltam um sorriso, mas a situação é de todo embaraçosa. Uma noite condenada disfarçada com um tira-nódoas disponível ou com uma água barrenta de uma torneira que já viu melhores dias.
Por vezes me pergunto qual o significado destes acontecimentos. Parecem armadilhas do Diabo (escrito com letra maiúscula porque o respeitinho é muito bonito). Manobras desalinhadas que nos recordam que o corpo é mais importante do que muitas vezes julgamos. Até ele tem vida própria. Mas no fundo, isto é demasiado evidente, pois até o pensamento tem direito a férias. E pela leitura deste texto facilmente se compreende que o pensamento deveria ter ido de férias antes de ter comprado tal camisa, pois a pressão do bom gosto social, requere concentração. Mas não culpemos de imediato este pensamento. Soube agora que a camisa tinha-lhe sido oferecida pela avó. E no que toca a isso, a moda não tem idades...

2 comentários:

Anónimo disse...

É engraçado que use a traição para adjectivar o corpo e que depois diga que o pensamento não está adaptado com o corpo que o conduz. A traição é plural e indicativa de uma relação ou ligação entre elementos ou variaveis, se a virmos neste contexto como denunciante de um segredo veremos que o corpo e o pensamento estão em plena sintonia. Entendo o k disse, mas o pensamento não é simples é complexo, tem vários niveis, e penso que muitos dos “acidentes” descritos provêm dos pensamentos não conscientes, da acção do infra-eu de sms enviados por esta personagem ao nosso SNC que os transforma em acção, os tais actos falhados. Analisemos a situação descrita,a refeição e o molho, presumo que tenha acontecido num contexto já de si tenso, nervoso; nessas alturas a nossa insegurança está ao rubro e certamente que o individuo da camisa verde não conseguiu relaxar, o ambiente tenso gerado sentido pelos intervenientes levou à necessidade de soltar a pressão, logo ao não raciocinio e à abertura para o pensamento não consciente e instintivo que passa a manobrar a acção do corpo. O que a maioria das pessoas diz qdo estão nervosas? dizem que não estão a pensar claramente.Como o individuo libertou a tensão?Com a parveira, que soltou os sorrisos e fora os salpicos rosa na camisa verde alface a noite a partir deste acto falhado foi concerteza mais agradavel, mais relaxada. O corpo não faz manobras desalinhadas, está em perfeito alinhamento com os nossos pensamentos, todos eles. Podem à superficie algumas acções nos parecerem um desalinho mas basta determo-nos por um momento para vermos que a razão é (quase) sempre muito simples.

Bulak disse...

Obrigado pelo excelente comentário. Sem dúvida alguma que estamos a falar de um casamento. Apenas me referi à falta de consciência que temos. Pensamento conduz e o corpo executa. Parece-me que o corpo se mete muitas vezes em seara alheia, mesmo que todos saibamos que é na herdade dos neurónios que tudo se decide. Os acidente nada têm de nervosismo. Alguma vez conduziu um carro quando era criança? Recordo-me da minha mãe me passar o volante por alguns instantes. O mesmo se passa com a história tranquila que contei.