Abraçado a Ela,
entrei. Um longo dia no areal brilhava na nossa tez morena. Tudo naquela
pequena vila sinalizava a estação do calor. As esplanadas repletas de
conversas, as toalhas garridas nas varandas, os sacos de carvão à venda. Deparei
com a velha gelataria encerrada. A bolacha caseira e as bolas de amora assim
perdidas. Uma morte anunciada a cada Verão pelo já descolorado “Passa-se” que pendia na janela. Portas
trancadas e ausência de sinais vitais. Disse a mim próprio que talvez me
tivesse enganado na rua numa tentativa de suavizar a minha desilusão. Mas não
havia dúvidas que era aquela a esquina dos meus gelados preferidos.
A vila estava agora
diferente da que recordava. Claramente mais pobre. A gelataria era a alma
daquela terra. Como o coliseu em Roma, os leões no Serengeti, o caril na Índia.
Ela que me abraçava, ficou também mais pobre, privada dos sabores que eu tanto lhe
tinha prometido. A pequena vila pulsava agora das novidades que aí se tinham estabelecido:
o padeiro alemão, a nova pensão, a loja em que entrei abraçado a
Ela. Na montra plantada em frente à antiga gelataria cintilavam diferentes
artigos de Verão: os colares e as pulseiras, os óculos de sol e os chapéus, as
túnicas e os chinelos. Talvez a localização da loja tivesse sido decidida a
pensar em mim. Como que um abraço à melancolia de todos aqueles que encontravam
a velha gelataria encerrada. A loja convidava a entrar, não tanto pelo que
podíamos lá dentro encontrar, mas por um qualquer equilíbrio magnetizador em
que tudo se achava. Abraçado a Ela, aproveitei a oportunidade para comprar uns
chinelos novos. Nem a melhor recauchutagem poderia acudir aos chinelos que
calçava. Seis anos de existência e meio mundo calcorreado, tornavam óbvia a fidelidade
à marca. Optei por um modelo exactamente do mesmo formato. Não havia por isso
quaisquer dúvidas em relação ao tamanho. Em relação aos chinelos que suportavam
o peso do meu corpo pela última vez, só se encontravam duas diferenças: a cor e
o estado em que se encontravam. Apesar de todas as certezas (marca, modelo e
tamanho) decidi experimentar os novos chinelos. Uma prova dos nove que se
revelou obviamente desnecessária pois os chinelos serviam na perfeição. A única
barreira que ainda impedia que os novos chinelos encontrassem morada imediata
nos meus pés era acertar as contas com a funcionária da loja. Enquanto tirava o
dinheiro da carteira, Ela com quem entrei abraçado na loja, perguntou: “Vais mesmo levar esses chinelos?”. “Claro que sim”, respondi eu. Ela anuiu
com um “Ah, ok”. Vi uma certa
incredulidade na sua expressão e inquiri-lhe os pensamentos. “É que os chinelos não te servem. São
pequenos.”. Se alguém conhecia os meus pés, esse era eu. Já estava preparado
para lhe dizer - “Estás ver como são os
outros?” - quando enfiei os dedos nos chinelos que me deu a experimentar. Apenas
consegui verbalizar um “Obrigado” porque
aquele sim, era o meu tamanho.
Saí da loja
abraçado a Ela e sorri para a velha gelataria uma última vez. Desta vez mais
rico do que quando cheguei, pois afinal de contas, agora sabia um pouco mais
sobre mim próprio. E foi por elas que o
descobri. Pela velha gelataria e por Ela que me abraçava…